quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO XX


Dia 24 de janeiro de 1592.Amanhecia, o sol começava a raiar na promessa de um dia lindo, céu azul, nenhuma nuvem, escutava-se o canto de milhares de pássaros naquela alvorada.Tudo estava tranqüilo e silencioso, a cidade estava acordando, as pessoas iam se aglomerando próximo ao caminho que ia da prisão até a Igreja da Santa Fé.Sabiam que aquele dia não seria igual aos outros, panfletos e avisos foram espalhados em toda a cidade dando ciência à população que haveria o Auto-de-Fé de uma prisioneira do Santo Ofício. O nome da prisioneira estava bem claro, Felipa de Souza.Não houve amanhecer para aquela mulher. Ela não dormia há três noites, a lembrança do dia anterior ainda trazia marcas bem vivas em sua mente. As dores que sentia não eram físicas, mas sim emocionais.Tinha se preparado para tudo, mas não sabia qual o tamanho desse tudo que deveria suportar.Seu semblante era assustador, o medo já fazia parte dos olhos, do rosto, do corpo dela. Não sabia o que ia acontecer, mas sabia que teria que suportar o insuportável. Era apavorante.Assim que a cela clareou, a porta se abriu e entraram dois homens e um inquisidor. Traziam consigo uma túnica, uma tesoura e uma vela. Felipa não sabia como aquilo seria utilizado, mas estava petrificada pelo medo e nada mais poderia assustá-la.Em tom de ordem e sem nenhum respeito sentaram-na em uma cadeira como um boneco de pano. Não sentia seu corpo. O homem com a tesoura nas mãos começa a puxar seu cabelo.Pensava, pela primeira vez naqueles dois dias, com um mínimo de raciocínio: - Meus cabelos, meus cabelos, negros e longos. - Lembrava o quanto haviam sido acariciados e amados por Lise, a única pessoa em que conseguia pensar naquele momento. E chorou...O homem, sem nenhuma pena, cortava-os rente à cabeça. Seu couro cabeludo, muitas vezes atingido pela tesoura, sangrava. O serviço não levou mais que alguns minutos. Ao final seu rosto estava transformado, parecia uma louca, alguns tufos eram maiores que outros, e parte do couro, em certos lugares, estava exposto.As lágrimas não pararam mais de correr em seu rosto.O homem arrancou-lhe o grosseiro camisolão e a vestiu com o sambenito, veste de linho cru e áspero. De pé ali naquela cela Felipa resolveu não sentir mais, não chorar mais, não se submeter ao que esperavam que seria sua reação. Levantou-se e disse a si mesma:- Estou morta, não sinto mais nada, o que tinham que me tirar já foi-me tirado, esta pessoa que está aqui, sem saber o que vai acontecer suportará em silêncio e sem verter mais nenhuma lágrima. Morro aqui e agora por minha própria decisão, Felipa de Souza está morta. A mulher que sairá por aquela porta será apenas o seu cadáver. Não olhará para os lados, não se intimidará perante os olhos que a acusarão, não sentirá nenhuma dor.Os homens saíram e a deixaram lá esperando.Vida nenhuma se espelhava em seus olhos quando a porta se abriu novamente e padre Pedro entrou e parou à sua frente, completamente chocado com o que viu.Olhou-a como se aquela não fosse a mulher com quem passara dias, quase um mês, para ser mais exato, sentado ao seu lado ouvindo o que de mais profundo trazia em sua alma.Num tom quase inaudível, sussurra:- Felipa...Silêncio, nenhuma resposta.Tenta mais uma vez:- Felipa?Ela não responde.Chega perto daquela triste figura, toca em seus cabelos, sente seu corpo reagir, vê todos os seus músculos retesados e, criando coragem, olha em seus olhos.Nada vê, busca algum sentimento, não acha. Onde estaria Felipa, como puderam fazer isso, e ela mal sabia ainda o que estava por vir. Tenta pela última vez:- Felipa, sei que está em algum lugar desse corpo, mas não me responde, sei que pode ouvir-me mesmo que nada me diga, mas não me vou calar. Vim abençoar-te, embora não saibam que aqui estou para isso, e conceder-te o perdão por tudo o que viveu, mas especialmente vim aqui pedir-te que me perdoe por fazer parte desta injustiça, violência e maldade. Já nem sei onde está Deus nos atos destes homens. Perdão, Felipa. Como meu último ato vestindo esta batina, posso e devo libertar-te. Deus perdoa-lhe, não sei se perdoará estes homens, mas a você, sim.Ela continuou como se nada ouvisse.Pedro já não se considerava mais parte daquele complô em nome de Deus, sabia que Deus não faria isso, pois fizeram-no ao Seu Filho, e Ele jamais teria vindo como filho à terra sofrer pelos homens para que outros homens continuassem a tentar fazer o Seu papel. Deus estava acima de todas aquelas coisas.Pedro não sai do lado dela, até que outros homens entram e avisam:- É a sua hora, levante-se!Automaticamente reagindo às ordens dadas, ela levanta-se.- Siga-nos - dizem.Ela segue-os sem ver nada ao seu redor, sente que o padre Pedro está ali, mas nada consegue expressar, os seus sentimentos estavam mortos pelo tempo que fosse necessário.Sobe as escadarias que desceu pela primeira vez há seis meses atrás, sem identificar onde está. Chegam à porta da prisão. O sol ofusca a sua visão, mas os seus olhos estão secos, aperta-os um pouco como única reação aos dias que ficou sem poder senti-lo em seu corpo.Entregam-lhe uma vela grande e mais grossa que as outras, acendem-na, dizem mais uma vez:- Siga em frente.Descalça, vestida com a túnica, os cabelos mutilados, Felipa segue alguns homens que estão à sua frente sem conseguir identificar nenhum.Pedro pára na escadaria da prisão, seguindo de longe o cortejo daquela vítima. A revolta não lhe sai do pensamento, a sua vontade é correr e tirar Felipa daquela situação tão humilhante.As ruas estavam lotadas, as pessoas apertavam-se para vê-la passar, sem deixar de imputar cada um seu julgamento.Um grande palanque havia sido levantado em frente à Igreja da Fé, para permitir o acesso das autoridades sem interferência do povo. Inquisição, clero, autoridades civis e militares tinham lugares rigorosamente determinados no palanque, rodeando um altar onde seriam realizados os ritos principais. A parte frontal, entre as autoridades e o povo, estava destinada à Felipa de Souza. Todas as autoridades de Salvador se faziam presentes, para que o brilho da solenidade não fosse empanado.O cortejo que levaria Felipa até a Igreja era constituído pelo carregador de uma arca que seria conduzida com muita distinção, contendo o Regimento do Santo Ofício, um dos cadernos dos inquisidores, o livro em que está a forma de absolvição dos reconciliados, tinteiros e papel para escrever no Auto, sendo necessário, e o meirinho, as demais pessoas do clero e algumas do Tribunal que estavam em Salvador.Ao avistarem Felipa os moradores da cidade xingam, cospem, dizem palavras para que ela se sinta mais humilhada do que já poderia estar. Mas ela passa em meio ao povo sem olhar para os lados, sem ouvir os impropérios que lhe são dirigidos. Seus pés doem ao percorrer o caminho, machucam-se nas pedras das ruas, sangram, mas nenhuma lágrima escorre. Nada!Mulheres que foram suas clientes e amigas, homens que a conheciam desde menina, parte de sua vida estava ali condenando-a, olhando-a como a uma aberração.Os gritos começam a ficar mais altos conforme vai seguindo o caminho:- Doente!- Sua imunda!- Herege!- Louca!- Filha do demônio!- Merece mais que isto!Uma voz se sobressai na multidão, e ela ouve a voz da qual conhecia os sussurros e os gemidos, mas que agora grita:- Sua pervertida, imoral!!! Paga pelo teu crime agora!Paula, Paula... A sua cabeça volta-se pela primeira vez os seus olhares encontram-se. Como numa conversa muda, Felipa fixa bem os olhos de Paula e pela primeira vez pensa, ganhando forças com isso:- Traidora! Tu devias estar aqui comigo agora e sabes bem disso, porque és mais imunda e pervertida que qualquer criatura debaixo deste sol.Paula parece sentir o pensamento, e para felicidade de Felipa ela finalmente baixa os olhos.Felipa continua seu penoso caminho, machucada, sangrando, mas sentindo-se bem pelo acontecido.Como o ritual estava sendo realizado fora do Tribunal da Inquisição, não foi possível realizar todas as exigências de sua feitura. Porém, o que pôde ser feito, assim foi realizado.Chegam em frente à Igreja da Santa Fé. Param, colocam-na no topo da escadaria e um homem sem fisionomia nenhuma pára a seu lado.O inquisidor ordena que Felipa se ajoelhe e coloque uma das mãos sobre a Bíblia que ele segura, e começa a gritar para que todos possam ouvi-lo:- Esta mulher que aqui se encontra é declarada culpada pelo Auto de Fé por crime sexual de práticas nefandas. Confessou o seu crime e será punida com o exílio para Portugal, para que permaneça pelo resto da sua vida encarcerada. Será açoitada publicamente, e será extraditada da cidade de Salvador, do estado da Bahia, e do Brasil, sendo considerada doente mental. Ainda terá que pagar pelos custos do processo o valor de 992 reis, equivalente ao salário mensal de um marinheiro. Caso não possua esta quantia, deverá pagar com três meses de trabalhos braçais, para que sirva de exemplo aos cristãos. Esta é a vontade cumprida e declarada pela Santa Inquisição e pelo seu Tribunal competente em Lisboa.Depois de lida, a sentença - assinada pelos inquisidores e selada com as armas do Santo Ofício, foi depositada nas mãos do Corregedor do Crime da Corte escolhido para recebê-la.O silêncio reinava em toda a Igreja.Felipa é posta de costas e amarrada a um pelourinho, para que o público possa assistir sua punição. Começam a açoitá-la, os homens que lhe desferem os golpes o fazem com tamanha brutalidade e precisão que não é possível alguém contar quantas vezes atingiram seu corpo.Ela permanece imóvel e de pé enquanto seu corpo agüenta. Após ser açoitada por um tempo determinado que ninguém sabe precisar, causando surpresa pelo quanto suportava, rende-se e seu corpo desfalece.A população assiste a tudo sem demonstrar nenhum sentimento de piedade.Apenas uma mulher chorava escondida entre a multidão: Quitéria. Ela e Pedro eram as duas únicas pessoas que realmente sabiam quem era aquela mulher de fibra, que se manteve digna apesar de tudo e todos.

Um comentário:

Unknown disse...

Nossa que história linda aqui contada sobre a vida de felipa de souza...
Digna de um filme