Salvador, capital da colônia Portuguesa do Brasil, final do ano de 1591.A cidade vivia cheia de medo e apreensão. Visitadores do Tribunal da Santa Inquisição lá se instalaram em busca de pessoas que denunciassem hereges, cristão-novos, judeus e praticantes de atos imorais, além dos que não agissem de acordo com a fé católica apostólica romana.Crimes que antes não eram da alçada dos inquisidores, como os sexuais, passaram a ser considerados ofensas graves, principalmente bigamia, sodomia e a bestialidade.No Nordeste, a população era constituída por mais de trinta por cento de judeus, incentivados pelo governo português a fixar moradia no Brasil. A relação entre judeus e cristãos era até então de relativa paz; residia também ali um grande número de cristão-novos, os quais viviam a mesma situação de terror, já que se sabiam alvos diretos da Inquisição.Havia um patrulhamento da fé e de pensamentos: seu vizinho, seu filho, seu amante poderiam ser seus delatores. Não se podia confiar em ninguém.Em meio a esse clima, em meio ao povo que ia e vinha, caminhava o padre Pedro Martins. Subia a ladeira em direção à prisão onde estavam os acusados da Santa Inquisição que faziam parte do Tribunal de Lisboa. Não seriam julgados no Brasil. Pelo menos a grande maioria era encaminhada para o legítimo tribunal, em Portugal.O padre era jovem, mas a subida da ladeira já o deixava esgotado. Parecia que a curiosidade saía por seus poros em forma de suor. Visitaria uma mulher acusada de crime sexual, e só o fato em si já era inusitado. Enquanto caminhava, sua mente cristã se envolvia em mil teorias sobre aquela mulher.“Que anomalia!!!! Será que tem aparência normal de mulher? E o corpo, possui a mesma estrutura? Seria mesmo possível tal acusação? Como se dava o fato, afinal eram duas mulheres, aquilo contrariava todas as possíveis explicações! Deus não fez o corpo para ser usado dessa forma, que tipo de sensação teriam? As mulheres não foram feitas para cumprir o papel do homem, será que esta teria o corpo disforme na sua anatomia sexual?”.Quase nem se deu conta de que já estava diante da escadaria do prédio. Cansado, parou alguns segundos e subiu os cinco lances que o levariam até o guarda na porta do local.Cumprimentou o jovem:-Bom dia, meu filho!O rapaz se levantou confuso, não sabia se pedia a bênção ou se batia continência. Percebendo a indecisão do moço o padre o abençoou, perguntando onde poderia encontrar o sargento Dias, que o aguardava, pois tinha ordens expressas do Bispo para visitar uma das presas.E escuta o guarda lhe perguntar, cheio de maledicência:- O senhor veio aqui falar com uma das filhas do demônio? – riu – É só chegar àquela mesa ali e pedir para avisarem o sargento.O padre agradeceu e seguiu as instruções.Aquele lugar tinha uma aparência asquerosa, fosse pela sujeira acumulada, fosse pelas paredes úmidas, como se acima delas houvesse uma goteira. Parecia um lugar esquecido pelos homens e por Deus.Chegou até à sala do sargento, apresentou-se e repetiu o que havia dito anteriormente. O militar levantou-se e acompanhou-o até a cela em que encontraria a mulher.Desceram as escadas e pararam diante de uma das portas feitas de madeira maciça. Podia sentir-lhe o peso apenas olhando para ela, “um tronco de madeira”, pensou o padre.Encravada na peça estava uma pequena abertura, por onde, provavelmente, eram para ser entregues os alimentos.Observando por essa passagem, viu sentada em um canto a figura de uma mulher.Trajava uma espécie de camisolão feito de um tecido grosseiro que mais parecia um saco. A vestimenta rude dava a estranha sensação de incomodar a pele da mulher, que aparentava delicadeza.A prisioneira tinha o olhar vago, como se pudesse ver o nada e soubesse o que nele continha. O padre afastou o rosto do vão e deu licença ao sargento, já impaciente com algumas de suas atitudes, assim o demonstrando sem o menor constrangimento. Bateu pesado na porta, gritando que um padre queria vê-la.Ela responde:- Deixe que entre!O rangido da porta se abrindo era assustador e alto, como se arranhasse o chão de pedra.Parado na porta sem saber o que fazer o padre lhe dirige a palavra:- Bom dia, Felipa! Eu posso entrar?Ele sabia toda a história da acusação dessa mulher, e admirou-se com o que viu: uma mulher de trinta e cinco anos que mais lhe parecia uma velha. Não por marcas da vida, mas pela falta de vida que havia em seu rosto. Não possuía sinal algum de esperança, nada lembrava que ali habitava uma alma.O padre trazia em suas mãos uma Bíblia, pois sabia que Felipa era letrada e sua intenção era lhe dar o livro. Ele não a salvaria do crime que lhe fora imputado, mas ela poderia conseguir, ao ler o livro, paz de espírito e arrependimento.Um carcereiro lhe trouxe uma cadeira, que ele arrastou para perto da mulher.Sem querer olhar diretamente para o padre, Felipa analisou aquela pessoa à sua frente. Apesar de vestido como todos os urubus que a visitavam, esse tinha alguma coisa diferente, não era velho como os outros e conseguia transmitir confiança, talvez pela aparência de inocência que trazia no rosto muito jovem. Mas se estava ali, com certeza era pelo mesmo motivo pelo qual todos estiveram, e perderia seu valioso tempo.Sem saber muito bem que atitude tomar, o padre falou a primeira bobagem que lhe veio à cabeça:- Estás pronta para falar?Ela ergueu suavemente a cabeça, cheia de desafio nos olhos, e disse:- És por acaso igual a esse velhacos que fazem interrogatórios?Pára, fixa os olhos nos dele, e continua:- Que esperas que eu lhe diga? Diz-me o senhor o motivo de estar eu aqui? Quem colocou-me cá atrás destas paredes? Será não há quem perceba que nada sei de minha estada aqui?Pedro captou o ódio daquela mulher, embora o tom de sua voz fosse da mais absoluta tristeza. Sentiu-se envaidecido por ela ter falado com ele, quantos tentaram antes e não conseguiram, muitos!! Muitos e mais experientes que ele, que saíra do seminário recentemente. Percebendo que a vaidade havia tomado seus pensamentos, culpa-se e pede perdão a Deus. Nervoso pela missão que a ele havia sido incumbida, espera que a conversa não acabe ali e procura estendê-la:- Filha, cá estou apenas para ouvi-te. Diga-me o que quiser. Não vou interrogar-te.Na verdade era isso mesmo que queria fazer, ser um inquisidor pelo menos uma vez na vida, mas não seria essa a sua função. Como gostaria de poder contribuir com a Santa Madre Igreja e o Papa!- Que queres de mim? Sabe por que cá estou? Era mais fácil que lesse os autos, porque eu mesma nada sei, não posso ser de grande ajuda. Vais me julgar e condenar-me na minha própria ignorância!! És igual a todos aqueles velhacos que escondem-se por detrás desta batina. “Urubu”!A voz de Felipa mal saía da sua garganta, era baixa e sem nenhuma emoção.Não poderia ser assim comparado. Não!!!! Não era isso o que faria, não a culparia sem ouvi-la!! Se a mulher quisesse falar, que falasse, da maneira que fosse, estava ali para ouvi-la. Diz:- Não estou cá para isso! Apenas ouvirte-te, para o que quiseres dizer. Converses comigo, apenas. Fales. Quem sabe não é isto que precisas?Estranhando a própria voz cheia de compreensão, olha para ela e espera alguma reação.A mulher se ajeita na palha seca, levanta os olhos marejados e vazios, como uma nau afundando.Ela lhe faz uma pergunta tola:- Vieste o senhor de Portugal? – dá de ombros e, como se falasse consigo mesma, resmunga – Quase todos que vivem cá de lá vieram.E continuou:- Vim-me ainda menina, de nove para dez anos. Lembro-me daquela viagem como se fosse hoje. Poderíamos nós falar sobre isto?Num aceno de cabeça, como que para não quebrar o encanto, o padre prepara-se para ouvi-la.- Minha história não é diferente da história das demais crianças que de lá vieram para cá. De Portugal lembro-me pouco, muito pouco. Mas de minha viagem para cá, jamais esqueceria! Vim com os meus pais. A minha mãe, coitadinha, estava apavorada por vir para esta terra de selvagens, o meu pai nem dava conta do que ela pensava, a decisão de mudarmos foi dele. Que Deus o tenha em bom lugar! Mas eu percebia como ela estava com medo.Parou de falar, lembrou-se da mãe - “provavelmente nunca mais a verei”.- Havia uma relação muito forte, assim o éramos por ela contar comigo e eu com ela. Ensinou-me a viver, a procurar a felicidade, embora não saiba disso. Chegamos cá em Janeiro, não me recordo quando saímos de lá. Aquela aventura ao mar foi uma grande diversão, afinal nunca havia saído da minha cidade.Quase falando para si mesma, continuou:- Não entendo como nunca visitamos parentes, mesmo os meus avós. Mas o passado a ele pertence, não questiono mais. Certo ou errado! – disse, em tom de conformação.- O capitão de nossa embarcação chamava-se Fernão Albuquerque, nunca esquecer-me-ei deste homem! Era admirável, e olhe que não digo isso só por mim. Todos o consideravam assim.Um pequeno sorriso escapa do seu rosto.- Eis um homem que nasceu para comandar, forte, muito altivo e enorme, muito alto mesmo... Talvez diga isso porque era pequena. Não, não, ele realmente era muito alto. Afeiçoei-me a este homem quase como a um pai, e ele a mim. Gostava da Felipa, e não da criança que era eu. Uma vez fiz-lhe uma pergunta que o fez dar uma gostosa gargalhada: – Por acaso com o sangue das tuas veias, corre água do mar? - Ele riu, riu muito, encantou-me vê-lo rir daquele jeito.Aconteciam coisas estranhas ali, a maioria das pessoas passava muito mal, vomitavam sem parar. Eu mesma não sentia nada, mas todos viviam enjoados, pendurados nas muradas. A mim era um sonho, mas para muitos foi um pesadelo. Conforto não tínhamos nenhum... nada... nenhum conforto. Dormíamos num único alojamento, todos misturados, homens, mulheres e crianças.O senhor tens idéia de como fede um alojamento daqueles depois de um mês? Um mês é muito! Poucos dias... pode imaginar? Nem queira! Fede, Padre, fede à urina, fezes, suor, é um fedor insuportável. Quanto mais tempo passava mais fedia. Muitas e muitas noites eu saía escondida e ia dormir no convés sem que ninguém me visse. Preferia isto a dormir com aquele cheiro horroroso.Era muito inocente, toda criança é. Só dei conta da distância que havia entre o meu pai e a minha mãe dentro daquele barco. Ela não queria lá estar, e nunca entendi porque meu pai, como tantos outros, não largou a família em Portugal e veio para a colônia sozinho. Até hoje pergunto-me qual foi a razão que ele teve para trazer-nos para o que a minha mãe chamava de fim de mundo, e que para mim hoje é o meu pesadelo! – E calou-se, passando a limpo a sua vinda a Salvador.O padre, inexperiente, não sabia se pedia que ela continuasse ou se permanecia em silêncio. Até para Deus apelou, até que, do nada, ouviu a voz de Felipa novamente:- Meu pai era um homem sonhador e veio atrás dos seus sonhos, apesar de todos os protestos. Não era de muito carinho, este era o seu feitio. Sabia que ele amava me, era isto que me importava. Foi um bom pai. Que Deus o tenha! Apesar de não ter sido um bom marido, mas isto era lá entre ele e a minha mãe, não era problema meu. Ao desembarcarmos cá, fomos até ao que parecia ser um alojamento para os recém-chegados esperar que orientassem-nos sobre o que fazer. Foi difícil dizer adeus ao Capitão, nos poucos meses que passamos juntos amei-o como a um pai. Sei que não foi difícil só para mim, sei muito bem disso...Olhou para o padre e disse:- Será que existe destino, padre? Tudo o que vivemos cá no mundo já está traçado por Deus? Porque o destino pregou-me boas peças, ruins também. Coisas que acontecem na vida às vezes formam um emaranhado que só Deus pode desatar. Eu sabia que veria o Capitão outra vez, era uma certeza que tinha no meu coração, e aconteceu mesmo. Muito tempo depois.E continuou, para satisfação do padre:- Adaptar-se aqui não foi problema, meu pai tinha consigo uma boa quantidade de dinheiro, lembro-me que por muito tempo comentou com a minha mãe que estava a economizar. Devia ganhar boas gorjetas – disse, encolhendo os ombros. – Depressa arranjamos uma casa, que era muito melhor que a de lá.E acrescenta em voz alta: – A vida lá não era fácil, não, nada fácil.Sorrindo timidamente, prosseguiu:- A primeira vez que saí a passear com a minha mãe aqui, apanhei um grande susto, não tinha reparado o quanto esta cidade se parecia com uma cidade portuguesa. Talvez pela pouca idade, achei que tivéssemos voltado para lá.Depois vim a saber que Salvador foi mesmo construída para ser um pequeno Portugal. As casas eram iguais às de lá, as ruas, assim como os prédios do governo. Tudo se parecia muito. Salvador é uma réplica de qualquer cidade lusitana. Acredito que até para matar a saudade do povo. A minha mãe divertiu-se muito com minha confusão.Contei-lhe da minha casa? Lembro-me de como era linda, a luz do sol entrava pelas janelas, pela primeira vez tive um quarto. Tudo nela era lindo!Acho que entendo meu pai, nossa vida lá era sofrida, meu pai vivia insatisfeito com tudo que fazia. Quando casou-se com minha mãe, trabalhava como ferreiro, lembro-me dele assim, enquanto criança. Depois de um tempo, acho que se cansou e veio a ser taberneiro. Que mudança, hem, padre? De bater em ferros foi servir bebida para os marinheiros. O seu sonho deve ter começado ali, de tanto conviver com aqueles homens que vinham do mar. O sonho de que iria construir alguma coisa de que gostasse num lugar novo, inexplorado.Admirada, diz:- Sabias que a primeira vez que vi um negro foi cá? Aliás, foi cá que vi quase tudo pela primeira vez . Índios... vi aos montes, e as frutas???? Com certeza já as comeu. Como são saborosas as frutas daqui! Os nomes são estranhos, mas o gosto... hummm... Faz tempo que não como fruta... – disse para si mesma.O seu estômago roncou e lembrou-se do sabor das mais variadas frutas.- Pitanga, jenipapo, carambola, cupuaçu, manga... ah, manga! Gosto muitíssimo de manga, acho bom de comer, mas não se pode comer na frente de ninguém, lambuzo-me toda, e não sobra nada, não, chego a chupar até o caroço!O padre não estava preparado para a sensualidade com a qual ela descreveu a degustação da fruta. Inquieto, remexeu-se na cadeira como tentando disfarçar o impacto causado pela simples imagem da mulher comendo manga.Felipa continuou falando como se precisasse expurgar o passado para poder esquecer o presente.- Não lembro-me do gosto das frutas em Portugal, mas tenho certeza de que as de cá não se comparam às de lá. São muito melhores, têm sabor, substância.Como se lembrasse que ele estava a ouvir, pergunta:- Estás há muito tempo cá? Já provastes caju? Aqueles enormes, amarelos, que sabor!! Às coisas boas acostumamo-nos depressa.Continuou:- Meu pai pôde abrir uma loja que vendia ferragens, já que ele entendia do assunto, e era negócio próprio. A minha mãe não mudou quase em nada o que fazia, cuidava da casa e de mim. Ela costura bem, ou costurava, não sei se hoje ainda o faz, mas nunca como ofício. Ensinou-me, aprendi, fiquei melhor do que ela. Fui a melhor costureira de Salvador! Acho que ainda sou!Viajava por onde a sua memória a levava.- Lembro-me da minha infância, sem muitas crianças para brincar. Mas eu já não era tão criança assim. Aparecia sempre lá em casa uma negrinha, a mãe trabalhava na mesma rua, não muito longe, para uma velha, ô velha chata! Eu nunca havia entendido, naquela idade, por que não se podia misturar a cor das pessoas. Brancos são brancos, negros... Bem, negros não são nada, muitos diziam que não eram nem gente, que não possuíam inteligência ou alma.Pergunta:- Isto lá é verdade? Não acredito que Deus não lhes tenha dado alma, são tão gente quanto eu, carne, osso, sangue, tudo igual, não muda nada. Não acredito nesta história, e o senhor pode até dizer me que é verdade, mas não vou acreditar!O padre agradeceu a Deus por ela ter esquecido a pergunta.- Mentira, padre, tudo mentira. A minha amiga, o nome dela é Quitéria, era tão inteligente quanto eu. O senhor sabes que eu tive conhecimento das letras, ela também teve, não sei como, com aquela velha chata dona delas. Quando crescemos um pouquinho mais, idade de menina moça, não deixaram-me voltar a vê-la. Nunca entendi! Lembro-me de uma tarde em que estávamos a brincar na rua, e a velha veio com uma cara furiosa atrás da minha amiga... Tem certas coisas que ficam marcadas na cabeça da gente e parece que nem lavando saem. A velha chegou e bateu na cara da Quitéria!! Padre, aquilo revoltou-me, eu queria bater na mulher quando vi o sangue a escorrer da boca da pobrezinha. E bateu-lhe só porque estava à procura da menina e não a achava. Nós morávamos na mesma rua, e nem à porta a mulher apareceu. Certas coisas revoltam-me!!!Nesse momento, ouviram o carcereiro gritar que a hora tinha acabado. O padre levanta-se, deixa a Bíblia perto dela, e diz:- Minha filha, sei que não és analfabeta, como me disses, por isso trouxe-lhe a Palavra de Deus para que possas ler se assim o desejar. Com toda certeza irá fazer-lhe bem.Sem olhar para o livro, Felipa observou o padre sair e voltou a deitar-se, procurando que algo nos seus pensamentos pudesse dar-lhe descanso.
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
CAPÍTULO I
Salvador, capital da colônia Portuguesa do Brasil, final do ano de 1591.A cidade vivia cheia de medo e apreensão. Visitadores do Tribunal da Santa Inquisição lá se instalaram em busca de pessoas que denunciassem hereges, cristão-novos, judeus e praticantes de atos imorais, além dos que não agissem de acordo com a fé católica apostólica romana.Crimes que antes não eram da alçada dos inquisidores, como os sexuais, passaram a ser considerados ofensas graves, principalmente bigamia, sodomia e a bestialidade.No Nordeste, a população era constituída por mais de trinta por cento de judeus, incentivados pelo governo português a fixar moradia no Brasil. A relação entre judeus e cristãos era até então de relativa paz; residia também ali um grande número de cristão-novos, os quais viviam a mesma situação de terror, já que se sabiam alvos diretos da Inquisição.Havia um patrulhamento da fé e de pensamentos: seu vizinho, seu filho, seu amante poderiam ser seus delatores. Não se podia confiar em ninguém.Em meio a esse clima, em meio ao povo que ia e vinha, caminhava o padre Pedro Martins. Subia a ladeira em direção à prisão onde estavam os acusados da Santa Inquisição que faziam parte do Tribunal de Lisboa. Não seriam julgados no Brasil. Pelo menos a grande maioria era encaminhada para o legítimo tribunal, em Portugal.O padre era jovem, mas a subida da ladeira já o deixava esgotado. Parecia que a curiosidade saía por seus poros em forma de suor. Visitaria uma mulher acusada de crime sexual, e só o fato em si já era inusitado. Enquanto caminhava, sua mente cristã se envolvia em mil teorias sobre aquela mulher.“Que anomalia!!!! Será que tem aparência normal de mulher? E o corpo, possui a mesma estrutura? Seria mesmo possível tal acusação? Como se dava o fato, afinal eram duas mulheres, aquilo contrariava todas as possíveis explicações! Deus não fez o corpo para ser usado dessa forma, que tipo de sensação teriam? As mulheres não foram feitas para cumprir o papel do homem, será que esta teria o corpo disforme na sua anatomia sexual?”.Quase nem se deu conta de que já estava diante da escadaria do prédio. Cansado, parou alguns segundos e subiu os cinco lances que o levariam até o guarda na porta do local.Cumprimentou o jovem:-Bom dia, meu filho!O rapaz se levantou confuso, não sabia se pedia a bênção ou se batia continência. Percebendo a indecisão do moço o padre o abençoou, perguntando onde poderia encontrar o sargento Dias, que o aguardava, pois tinha ordens expressas do Bispo para visitar uma das presas.E escuta o guarda lhe perguntar, cheio de maledicência:- O senhor veio aqui falar com uma das filhas do demônio? – riu – É só chegar àquela mesa ali e pedir para avisarem o sargento.O padre agradeceu e seguiu as instruções.Aquele lugar tinha uma aparência asquerosa, fosse pela sujeira acumulada, fosse pelas paredes úmidas, como se acima delas houvesse uma goteira. Parecia um lugar esquecido pelos homens e por Deus.Chegou até à sala do sargento, apresentou-se e repetiu o que havia dito anteriormente. O militar levantou-se e acompanhou-o até a cela em que encontraria a mulher.Desceram as escadas e pararam diante de uma das portas feitas de madeira maciça. Podia sentir-lhe o peso apenas olhando para ela, “um tronco de madeira”, pensou o padre.Encravada na peça estava uma pequena abertura, por onde, provavelmente, eram para ser entregues os alimentos.Observando por essa passagem, viu sentada em um canto a figura de uma mulher.Trajava uma espécie de camisolão feito de um tecido grosseiro que mais parecia um saco. A vestimenta rude dava a estranha sensação de incomodar a pele da mulher, que aparentava delicadeza.A prisioneira tinha o olhar vago, como se pudesse ver o nada e soubesse o que nele continha. O padre afastou o rosto do vão e deu licença ao sargento, já impaciente com algumas de suas atitudes, assim o demonstrando sem o menor constrangimento. Bateu pesado na porta, gritando que um padre queria vê-la.Ela responde:- Deixe que entre!O rangido da porta se abrindo era assustador e alto, como se arranhasse o chão de pedra.Parado na porta sem saber o que fazer o padre lhe dirige a palavra:- Bom dia, Felipa! Eu posso entrar?Ele sabia toda a história da acusação dessa mulher, e admirou-se com o que viu: uma mulher de trinta e cinco anos que mais lhe parecia uma velha. Não por marcas da vida, mas pela falta de vida que havia em seu rosto. Não possuía sinal algum de esperança, nada lembrava que ali habitava uma alma.O padre trazia em suas mãos uma Bíblia, pois sabia que Felipa era letrada e sua intenção era lhe dar o livro. Ele não a salvaria do crime que lhe fora imputado, mas ela poderia conseguir, ao ler o livro, paz de espírito e arrependimento.Um carcereiro lhe trouxe uma cadeira, que ele arrastou para perto da mulher.Sem querer olhar diretamente para o padre, Felipa analisou aquela pessoa à sua frente. Apesar de vestido como todos os urubus que a visitavam, esse tinha alguma coisa diferente, não era velho como os outros e conseguia transmitir confiança, talvez pela aparência de inocência que trazia no rosto muito jovem. Mas se estava ali, com certeza era pelo mesmo motivo pelo qual todos estiveram, e perderia seu valioso tempo.Sem saber muito bem que atitude tomar, o padre falou a primeira bobagem que lhe veio à cabeça:- Estás pronta para falar?Ela ergueu suavemente a cabeça, cheia de desafio nos olhos, e disse:- És por acaso igual a esse velhacos que fazem interrogatórios?Pára, fixa os olhos nos dele, e continua:- Que esperas que eu lhe diga? Diz-me o senhor o motivo de estar eu aqui? Quem colocou-me cá atrás destas paredes? Será não há quem perceba que nada sei de minha estada aqui?Pedro captou o ódio daquela mulher, embora o tom de sua voz fosse da mais absoluta tristeza. Sentiu-se envaidecido por ela ter falado com ele, quantos tentaram antes e não conseguiram, muitos!! Muitos e mais experientes que ele, que saíra do seminário recentemente. Percebendo que a vaidade havia tomado seus pensamentos, culpa-se e pede perdão a Deus. Nervoso pela missão que a ele havia sido incumbida, espera que a conversa não acabe ali e procura estendê-la:- Filha, cá estou apenas para ouvi-te. Diga-me o que quiser. Não vou interrogar-te.Na verdade era isso mesmo que queria fazer, ser um inquisidor pelo menos uma vez na vida, mas não seria essa a sua função. Como gostaria de poder contribuir com a Santa Madre Igreja e o Papa!- Que queres de mim? Sabe por que cá estou? Era mais fácil que lesse os autos, porque eu mesma nada sei, não posso ser de grande ajuda. Vais me julgar e condenar-me na minha própria ignorância!! És igual a todos aqueles velhacos que escondem-se por detrás desta batina. “Urubu”!A voz de Felipa mal saía da sua garganta, era baixa e sem nenhuma emoção.Não poderia ser assim comparado. Não!!!! Não era isso o que faria, não a culparia sem ouvi-la!! Se a mulher quisesse falar, que falasse, da maneira que fosse, estava ali para ouvi-la. Diz:- Não estou cá para isso! Apenas ouvirte-te, para o que quiseres dizer. Converses comigo, apenas. Fales. Quem sabe não é isto que precisas?Estranhando a própria voz cheia de compreensão, olha para ela e espera alguma reação.A mulher se ajeita na palha seca, levanta os olhos marejados e vazios, como uma nau afundando.Ela lhe faz uma pergunta tola:- Vieste o senhor de Portugal? – dá de ombros e, como se falasse consigo mesma, resmunga – Quase todos que vivem cá de lá vieram.E continuou:- Vim-me ainda menina, de nove para dez anos. Lembro-me daquela viagem como se fosse hoje. Poderíamos nós falar sobre isto?Num aceno de cabeça, como que para não quebrar o encanto, o padre prepara-se para ouvi-la.- Minha história não é diferente da história das demais crianças que de lá vieram para cá. De Portugal lembro-me pouco, muito pouco. Mas de minha viagem para cá, jamais esqueceria! Vim com os meus pais. A minha mãe, coitadinha, estava apavorada por vir para esta terra de selvagens, o meu pai nem dava conta do que ela pensava, a decisão de mudarmos foi dele. Que Deus o tenha em bom lugar! Mas eu percebia como ela estava com medo.Parou de falar, lembrou-se da mãe - “provavelmente nunca mais a verei”.- Havia uma relação muito forte, assim o éramos por ela contar comigo e eu com ela. Ensinou-me a viver, a procurar a felicidade, embora não saiba disso. Chegamos cá em Janeiro, não me recordo quando saímos de lá. Aquela aventura ao mar foi uma grande diversão, afinal nunca havia saído da minha cidade.Quase falando para si mesma, continuou:- Não entendo como nunca visitamos parentes, mesmo os meus avós. Mas o passado a ele pertence, não questiono mais. Certo ou errado! – disse, em tom de conformação.- O capitão de nossa embarcação chamava-se Fernão Albuquerque, nunca esquecer-me-ei deste homem! Era admirável, e olhe que não digo isso só por mim. Todos o consideravam assim.Um pequeno sorriso escapa do seu rosto.- Eis um homem que nasceu para comandar, forte, muito altivo e enorme, muito alto mesmo... Talvez diga isso porque era pequena. Não, não, ele realmente era muito alto. Afeiçoei-me a este homem quase como a um pai, e ele a mim. Gostava da Felipa, e não da criança que era eu. Uma vez fiz-lhe uma pergunta que o fez dar uma gostosa gargalhada: – Por acaso com o sangue das tuas veias, corre água do mar? - Ele riu, riu muito, encantou-me vê-lo rir daquele jeito.Aconteciam coisas estranhas ali, a maioria das pessoas passava muito mal, vomitavam sem parar. Eu mesma não sentia nada, mas todos viviam enjoados, pendurados nas muradas. A mim era um sonho, mas para muitos foi um pesadelo. Conforto não tínhamos nenhum... nada... nenhum conforto. Dormíamos num único alojamento, todos misturados, homens, mulheres e crianças.O senhor tens idéia de como fede um alojamento daqueles depois de um mês? Um mês é muito! Poucos dias... pode imaginar? Nem queira! Fede, Padre, fede à urina, fezes, suor, é um fedor insuportável. Quanto mais tempo passava mais fedia. Muitas e muitas noites eu saía escondida e ia dormir no convés sem que ninguém me visse. Preferia isto a dormir com aquele cheiro horroroso.Era muito inocente, toda criança é. Só dei conta da distância que havia entre o meu pai e a minha mãe dentro daquele barco. Ela não queria lá estar, e nunca entendi porque meu pai, como tantos outros, não largou a família em Portugal e veio para a colônia sozinho. Até hoje pergunto-me qual foi a razão que ele teve para trazer-nos para o que a minha mãe chamava de fim de mundo, e que para mim hoje é o meu pesadelo! – E calou-se, passando a limpo a sua vinda a Salvador.O padre, inexperiente, não sabia se pedia que ela continuasse ou se permanecia em silêncio. Até para Deus apelou, até que, do nada, ouviu a voz de Felipa novamente:- Meu pai era um homem sonhador e veio atrás dos seus sonhos, apesar de todos os protestos. Não era de muito carinho, este era o seu feitio. Sabia que ele amava me, era isto que me importava. Foi um bom pai. Que Deus o tenha! Apesar de não ter sido um bom marido, mas isto era lá entre ele e a minha mãe, não era problema meu. Ao desembarcarmos cá, fomos até ao que parecia ser um alojamento para os recém-chegados esperar que orientassem-nos sobre o que fazer. Foi difícil dizer adeus ao Capitão, nos poucos meses que passamos juntos amei-o como a um pai. Sei que não foi difícil só para mim, sei muito bem disso...Olhou para o padre e disse:- Será que existe destino, padre? Tudo o que vivemos cá no mundo já está traçado por Deus? Porque o destino pregou-me boas peças, ruins também. Coisas que acontecem na vida às vezes formam um emaranhado que só Deus pode desatar. Eu sabia que veria o Capitão outra vez, era uma certeza que tinha no meu coração, e aconteceu mesmo. Muito tempo depois.E continuou, para satisfação do padre:- Adaptar-se aqui não foi problema, meu pai tinha consigo uma boa quantidade de dinheiro, lembro-me que por muito tempo comentou com a minha mãe que estava a economizar. Devia ganhar boas gorjetas – disse, encolhendo os ombros. – Depressa arranjamos uma casa, que era muito melhor que a de lá.E acrescenta em voz alta: – A vida lá não era fácil, não, nada fácil.Sorrindo timidamente, prosseguiu:- A primeira vez que saí a passear com a minha mãe aqui, apanhei um grande susto, não tinha reparado o quanto esta cidade se parecia com uma cidade portuguesa. Talvez pela pouca idade, achei que tivéssemos voltado para lá.Depois vim a saber que Salvador foi mesmo construída para ser um pequeno Portugal. As casas eram iguais às de lá, as ruas, assim como os prédios do governo. Tudo se parecia muito. Salvador é uma réplica de qualquer cidade lusitana. Acredito que até para matar a saudade do povo. A minha mãe divertiu-se muito com minha confusão.Contei-lhe da minha casa? Lembro-me de como era linda, a luz do sol entrava pelas janelas, pela primeira vez tive um quarto. Tudo nela era lindo!Acho que entendo meu pai, nossa vida lá era sofrida, meu pai vivia insatisfeito com tudo que fazia. Quando casou-se com minha mãe, trabalhava como ferreiro, lembro-me dele assim, enquanto criança. Depois de um tempo, acho que se cansou e veio a ser taberneiro. Que mudança, hem, padre? De bater em ferros foi servir bebida para os marinheiros. O seu sonho deve ter começado ali, de tanto conviver com aqueles homens que vinham do mar. O sonho de que iria construir alguma coisa de que gostasse num lugar novo, inexplorado.Admirada, diz:- Sabias que a primeira vez que vi um negro foi cá? Aliás, foi cá que vi quase tudo pela primeira vez . Índios... vi aos montes, e as frutas???? Com certeza já as comeu. Como são saborosas as frutas daqui! Os nomes são estranhos, mas o gosto... hummm... Faz tempo que não como fruta... – disse para si mesma.O seu estômago roncou e lembrou-se do sabor das mais variadas frutas.- Pitanga, jenipapo, carambola, cupuaçu, manga... ah, manga! Gosto muitíssimo de manga, acho bom de comer, mas não se pode comer na frente de ninguém, lambuzo-me toda, e não sobra nada, não, chego a chupar até o caroço!O padre não estava preparado para a sensualidade com a qual ela descreveu a degustação da fruta. Inquieto, remexeu-se na cadeira como tentando disfarçar o impacto causado pela simples imagem da mulher comendo manga.Felipa continuou falando como se precisasse expurgar o passado para poder esquecer o presente.- Não lembro-me do gosto das frutas em Portugal, mas tenho certeza de que as de cá não se comparam às de lá. São muito melhores, têm sabor, substância.Como se lembrasse que ele estava a ouvir, pergunta:- Estás há muito tempo cá? Já provastes caju? Aqueles enormes, amarelos, que sabor!! Às coisas boas acostumamo-nos depressa.Continuou:- Meu pai pôde abrir uma loja que vendia ferragens, já que ele entendia do assunto, e era negócio próprio. A minha mãe não mudou quase em nada o que fazia, cuidava da casa e de mim. Ela costura bem, ou costurava, não sei se hoje ainda o faz, mas nunca como ofício. Ensinou-me, aprendi, fiquei melhor do que ela. Fui a melhor costureira de Salvador! Acho que ainda sou!Viajava por onde a sua memória a levava.- Lembro-me da minha infância, sem muitas crianças para brincar. Mas eu já não era tão criança assim. Aparecia sempre lá em casa uma negrinha, a mãe trabalhava na mesma rua, não muito longe, para uma velha, ô velha chata! Eu nunca havia entendido, naquela idade, por que não se podia misturar a cor das pessoas. Brancos são brancos, negros... Bem, negros não são nada, muitos diziam que não eram nem gente, que não possuíam inteligência ou alma.Pergunta:- Isto lá é verdade? Não acredito que Deus não lhes tenha dado alma, são tão gente quanto eu, carne, osso, sangue, tudo igual, não muda nada. Não acredito nesta história, e o senhor pode até dizer me que é verdade, mas não vou acreditar!O padre agradeceu a Deus por ela ter esquecido a pergunta.- Mentira, padre, tudo mentira. A minha amiga, o nome dela é Quitéria, era tão inteligente quanto eu. O senhor sabes que eu tive conhecimento das letras, ela também teve, não sei como, com aquela velha chata dona delas. Quando crescemos um pouquinho mais, idade de menina moça, não deixaram-me voltar a vê-la. Nunca entendi! Lembro-me de uma tarde em que estávamos a brincar na rua, e a velha veio com uma cara furiosa atrás da minha amiga... Tem certas coisas que ficam marcadas na cabeça da gente e parece que nem lavando saem. A velha chegou e bateu na cara da Quitéria!! Padre, aquilo revoltou-me, eu queria bater na mulher quando vi o sangue a escorrer da boca da pobrezinha. E bateu-lhe só porque estava à procura da menina e não a achava. Nós morávamos na mesma rua, e nem à porta a mulher apareceu. Certas coisas revoltam-me!!!Nesse momento, ouviram o carcereiro gritar que a hora tinha acabado. O padre levanta-se, deixa a Bíblia perto dela, e diz:- Minha filha, sei que não és analfabeta, como me disses, por isso trouxe-lhe a Palavra de Deus para que possas ler se assim o desejar. Com toda certeza irá fazer-lhe bem.Sem olhar para o livro, Felipa observou o padre sair e voltou a deitar-se, procurando que algo nos seus pensamentos pudesse dar-lhe descanso.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário