quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO XIII

O bispo ordenou que enviassem mais comida à Felipa, nada que fosse uma iguaria, mas sua alimentação melhorou muito. Passou a receber três rações por dia, pão, água e uma fruta.O dia em que começaram a trazer o alimento a mais foi motivo de riso e comentários a respeito da pressa que tinham.Felipa iria começar uma outra etapa de sua vida, talvez essa fosse mais desagradável ao padre do que ele podia esperar, mas a decisão já estava tomada. Fosse qual fosse a reação dele teria que suportar, afinal agora já era uma função ordenada, não mais por vontade própria.Como de costume, com todo o aparato para começar a tomar notas, o padre avisou que já estava pronto para a continuação. Felipa pensou “tá nada padre, tá nada”. Sabia que não tinham mais como voltar atrás.Sem jeito, mexendo-se mais do que o normal, Felipa começou:- Como eu estava a dizer, passei mais de um ano de penúria com a partida de Lise. Sabe como é a vida, eu sofria, mas o meu corpo pedia, a carne é fraca, padre. Fraca demais! E lá estava eu, saudosa, mas carente, o senhor desculpe, mas eu tinha apreciado aquele tipo de vida. Não que não a amasse, mas ela não estava ali, maldita carne.Tentava de todas as maneiras amenizar o que deveria contar, desculpava-se, culpava a carne, tentava desviar o assunto, olhava para o teto, sabia que deveria começar a falar. Mandou tudo às favas, encheu o peito e começou:- Pois, mais de um ano e eu sofrendo, não é que um dia... quem eu encontro, padre? Adivinha?O padre nem abriu a boca.- A Quitéria, lembra-te dela? A minha amiga de criança, eu falei dela ao senhor. Já era mulher como eu, e como era bonita, bonita desde criancinha. Eu andava pelas lojas, procurando umas coisas de costura, quando vejo uma negra vindo na minha direção. Olhei bem, pensei - conheço esta aí - continuei olhando a mulher, ela passou por mim sem me reconhecer, eu devia estar mesmo um trapo, virei-me para trás e aí reconheci pelo jeito como rebolava a nádegas... e gritei - Quitéria!!! - Ela virou-se para mim com um olhar de quem não sabia quem eu era. - Sou eu, a Felipa! - Quando eu falei ela abriu um sorriso e veio para perto de mim, e eu perguntei - Por onde andas, mulher? Tás fazendo o quê? Quanto tempo!!! - Respondeu-me que estava bem, eu perguntei-lhe pela velha, ela contou-me que tinha morrido, dei graças a Deus. Perguntei pela mãe dela, contou-me que tinha morrido, eu já estava a ficar desanimada com tanta tragédia. Aí a carne falou mais alto, tasquei a pergunta - Que andas a fazer, mulher? - pra minha surpresa, ela respondeu-me - Nada, sou amante de um coronel de Ilhéus que vem a Salvador de tempos a tempos, fica comigo uns quinze dias e depois volta para a terra dele - eu pensei “também, com esse corpo, não era para faxina que ela servia não.”.Não estava a olhar para ela com desejo nenhum padre - tentou desculpar-se mais uma vez - mas como tínhamos sido amigas de infância eu queria saber mais da vida dela. Logo nesse dia ela convidou-me para visitar a casa onde morava. Como eu tinha muito que fazer, peguei no endereço e combinamos encontrar-nos no dia seguinte para tomar um café com bolo. Tínhamos tanto o que conversar!Pela conversa, o padre já desconfiava onde aquilo ia parar.- No outro dia arranjei-me e fui. Parei diante da casa dela e fiquei pasmada, era uma casa enorme, até tinha escravo. Bati à porta e uma negrinha atendeu-me, disse que a senhora me esperava na sala e eu fui entrando.Realmente a casa era linda, os móveis, tudo de muito rico. Encontrei Quitéria sentada numa poltrona muito bonita. Ela levantou-se, veio até mim, trocamos cumprimentos e sentamo-nos para pôr a conversa em dia.Quanta coisa tinha acontecido desde que tínhamos deixado de nos vermos! Fomos falando, falando, nem vimos as horas a passar, mas não entramos em nenhum detalhe pessoal das nossas vidas. Tomamos café com um bolo de fubá delicioso que ela me disse ser receita da mãe. Falei das minhas costuras, perguntei por que é que nunca tinha ido lá para eu costurar para ela, disse-me que era por causa do preconceito, mesmo tendo dinheiro continuava a ser negra.Eu nunca a vi assim. Falamos de tudo e de nada. Foi ficando tarde e combinamos fazer isso sempre. Eu achei ótimo, teria alguém para conversar, e acredito que esse também tenha sido o motivo dela. Despedimo-nos e fui embora, estava mais feliz do que nos outros dias. Até o Francisco notou, eu contei-lhe o que tinha acontecido, mais uma vez ele achou bom e não disse uma palavra.O padre ficou curioso com a indiferença daquele homem, e perguntou:- Felipa, ele nunca tocou no assunto da Elise? Nunca perguntou-te absolutamente nada?- Eu vou dizer-te uma coisa mas não anote, nem o nome da Quitéria, por favor. Eu acredito que ele devia de ter uma certa tara nessas coisas, mas nunca me disse nada nem pediu nada de anormal. Quantas noites dormi na casa da Lise, chegava a casa e ele apenas perguntava se eu tinha dormido bem, o que tínhamos feito, se nos tínhamos divertido. E eu respondia tudo no maior respeito, nunca lhe contei particularidades, acho que ele gostava de imaginar. Não posso pensar outra coisa, ou posso?- Eu não sei minha filha, mas que realmente a atitude dele era estranha, isso era.A curiosidade de Felipa fez com que a curiosidade do padre também se aguçasse, quando ela perguntou:- Por que é que o senhor, como padre, não vai lá e lhe pergunta, assim como quem não quer nada?- Vou pensar Felipa, vou pensar.- Continuando, passei a visitar Quitéria quase todas as tardes. Fomo-nos tornando grandes amigas, ela até me apresentou ao coronel dela que, Deus me livre, era feio, mas tinha-lhe dado o que eu nunca tinha tido na vida, liberdade. Começamos a ficar íntimas e passamos a falar das nossas vidas. Eu não criava coragem de contar sobre a Elise, sabia que não era uma coisa normal para se ouvir. Contava as minhas tristezas da vida de casada, ela contava como o coronel era bom para ela, apesar de na cama ser de pouca valia, porém não tinha importância porque ele era rápido.Um dia ela pediu-me para pernoitar na casa dela. Corri a casa, avisei o meu marido que ia passar a noite lá, dei o endereço e ele só me disse isto - Vai lá, minha filha, estás a precisar de te animar um pouquinho. Padre, aquilo não era o mesmo que dizer para eu me deitar com ela? Fiz uma maleta com as minhas coisas pessoais, o senhor sabe, coisas de mulher, camisola, escova, fui direta para a casa dela.Cheguei e ela mostrou-me um quarto lindo, disse que eu iria dormir ali. Descemos e fomos jantar, comida boa, bem feita, até tinha vinho, não era do meu costume beber, mas tomei umas tacinhas. Conversa vai, conversa vem, ela perguntou-me na cara - Felipa, tiveste um caso de amor com a Elise? - Quase caí da cadeira, como é que ela podia saber daquilo? Não sabia o que responder, nem foi preciso, porque ela continuou - Existem coisas que os escravos não guardam para si, a escrava dela contou à minha, que me contou assim, eu fiquei a saber. - Eu estava pasmada, de queixo caído, com certeza. Não conseguia dizer nada. Acho que por causa do vinho a língua destravou, contei tudo, tudinho.Conforme eu ia contando ela ia-se chegando para perto de mim, a carne é fraca, a Quitéria linda, cheirosa, ali na minha frente... Deve ter sido o vinho, cheguei perto dela e beijei-a, pensei que ela me ia empurrar para bem longe, que nada, ela é que me puxou mais para perto. O senhor sabe, carne fraca, desejo forte, Quitéria daquele dia em diante passou a ser a minha amante, não havia amor não, era mesmo desejo, puro desejo.Pedro já imaginava a trajetória da conversa, por isso não se assustou, apenas ouvia e anotava.- Quando o coronel vinha eu aparecia, no almoço ou no jantar. Nestas semanas que ele passava com ela, nós quase morríamos de vontade, mas era o preço que ela tinha que pagar, senão ele podia até matar a pobre. Mal o homem pegava o rumo de Ilhéus, nós duas já estávamos de novo juntas. E eu pergunto ao senhor, acha que o Francisco não sabia? Sabia e nada, nadica. Como éramos quentes, padre! Eu nem podia sonhar que ela gostava daquilo.Uma vez estávamos a descansar na cama e começamos a conversar. Ela contou-me que desde criança já tinha isso com ela, esse desejo por mulheres, mas sabia muito bem que mulher nenhuma a poderia tirar da vida de escrava. Tinha aprendido as técnicas do amor com uma negra, era a mais esperta e sabida do assunto em toda a cidade de Salvador. Contou que a mulher ensinava de tudo, o senhor nem queira saber, nem vou contar senão o senhor é capaz de cair redondo no chão. Não havia nenhum homem que fizesse o papel de homem, não, era a própria professora que ensinava, não podia tirar a virgindade à negrinha, ela é que colocava as mãos onde devia.A Quitéria contou-me que quando conheceu o coronel era escrava de uma família, e que a velha que era dona dela, de burra não tinha nada, sabendo que não tinha muito tempo de vida, aproveitou o que Quitéria podia render, e vendeu-a para a família mais rica de Salvador. Ela era escrava de casa, sempre assim foi de servir.Num determinado dia, a dona vestiu os escravos todos empoados, disse-lhes que receberiam uma visita muito importante de Ilhéus. Na altura, Quitéria nem se apercebeu que ia ser a chance da vida dela. A família chegou para jantar, foi aquele banquete. Quitéria, por ser a mais bem apessoada, foi escolhida para levar os pratos à mesa. E foi fazendo o serviço direitinho, nem reparou o olhar faminto com que o homem olhava para ela. Acabado o jantar, conversa acabada, eles iam pernoitar na casa. Quitéria arrumou a cozinha e foi para o quartinho dela. Quando entrou, quem é que estava lá à sua espera? O coronel! O homem prometeu mundos e fundos para poder trepar com a negrinha, naquela hora disse-me ela que lhe vieram à cabeça as lições da mulher, e colocou-as em prática. Depois daquilo, ele comprou-a à família, muito a contra gosto da patroa, mas o dinheiro era muito, não dava para recusar. Montou-lhe a casa do jeitinho que ela quis, ela tem uma carta de liberdade e vive desse modo.O padre já estava cansado de ouvir essas histórias dos coronéis, e sabia muito bem que isso era aceite como normal.- Nós vivemos do puro desejo carnal, padre, Lise era o meu amor, mas o meu corpo era de Quitéria. Vivemos assim durante meses, até o coronel ter que mudar-se para o Recife. Ele não ia deixar Quitéria em Salvador, foi dolorosa a nossa separação, mas, como sabíamos que não era amor, foi mais fácil dizer adeus. Isso tinha se passado quase quatro anos depois da partida de Lise. Para ser mais precisa, três anos e cinco meses. Nós despedimo-nos com uma noite de amor, não, amor não, sexo, inesquecível. Aquela mulher satisfazia qualquer pessoa, fosse homem, fosse mulher.O padre já nem se chocava, as coisas entravam pelo seu ouvido como se fosse um conto fantasioso. Fez todas as anotações, omitindo apenas o que Felipa pediu.

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