quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO III


No pequeno catre onde estava, a figura de Felipa quase desaparecia, era impossível se acomodar, ficava encolhida em posição fetal. Desse jeito, sentia-se protegida. Lembrava-se dos tantos lugares em que havia visto negros passarem quase que a vida inteira. Locais iguais ou piores que o de seu confinamento.Pensamentos... procurava não tê-los!!!Olhava a seu redor, via a sujeira, os insetos e roedores passeando como se fosse ela a intrusa; não havia nada naquele lugar, nem um simples colchão, dormia encolhida no chão frio coberto de palha seca e agradecia o calor que castigava Salvador nessa época do ano.Suas lembranças eram de momentos soltos, largados, do que havia sido sua vida até o momento de sua prisão.As horas passavam, para ela o tempo não tinha mais importância alguma. Conjeturava: “O que faria se o tempo parasse?” Com dores pelo corpo todo, fazia uma análise distorcida do que lhe vinha à mente.“O tempo!!! O que é o tempo para quem nada tem? Eu vivo de um passado sem futuro, presente não possuo, o ontem já é hoje, tempo!!! Tempo!!! Quanto tempo se passou desde que os homens me destituíram da condição de ser humano? Tempo!!! Jogo de sorte ou azar, vício da vida, sem ti nada seríamos ou faríamos, isto é o que tu és, tempo, todos vivemos escravizados à espera do que pode acontecer enquanto ainda há tempo!!!”.Seus devaneios lhe faziam falar com o nada à espera de uma resposta, talvez questionasse sem motivo algum, como uma alma enlouquecendo com medo do que estava por vir.“Quanto tempo será que me resta? Por que é que ninguém me diz nada e me deixam aqui sem saber o meu fim? O que querem de mim? Enlouquecer-me, só pode ser isso. Só pode ser!”.O sono não chegava, o desconforto fez com que voltasse ao passado, à sua viagem para o Brasil.Comparou o lugar onde agora tentava dormir com o alojamento da caravela. As sensações eram similares, mas os motivos tão diferentes! Um a levava à vida e o outro, provavelmente, à morte.Lembrou-se da primeira vez em que viu a morte de perto naquela embarcação. Os mais fracos que não conseguiram completar a viagem por terem adoecido sem ter como se curarem, sendo levados ao destino que os aguardava, a morte. No Santa Helena foram quatro, e vários outros nas outras naus.Com um arrepio percorrendo o corpo, via nitidamente as cenas dos homens enrolados em tecidos sendo jogados ao mar. Queria esquecer a imagem que lhe vinha à cabeça nesse instante. Fechou os olhos o mais forte que pôde tentando apagar essa marca tão viva que lhe parecia muito mais forte agora.“Tudo que tem vida morre, pessoas, animais, plantas, mas a morte que mais dói é aquela dos sonhos que não chegamos a ver nascer. Meu filho!!! Sonhei tanto com a tua vida, queria ter-te visto nascer, amamentar-te, ver-te crescer, sentir-me mãe, mas nunca vieste ao mundo, foste um sonho morto como o meu sonho de ser mãe. Todos mortos, sonhos mortos, as piores mortes a enfrentar!!!”Pensou em Francisco, na sua simplicidade, teve pena, ele estava velho para enfrentar aquilo, afinal quem estava em idade de sofrer todo esse infortúnio?De repente sua memória retorna, pouco mais, pouco menos, há dez anos atrás.Estava em sua casa, como de costume costurando, quando viu entrar pela porta uma mulher distinta, séria, de poucas palavras, nunca a tinha visto pela cidade. Era realmente diferente, cabelos negros bem penteados amarrados na nuca, a roupa impecável, um andar de pessoa muito educada, com certeza era estudada, nada tinha das portuguesas que moravam por ali.A senhora pediu licença, entrou, perguntou se podia esperar, Felipa concordou imediatamente, ofereceu-lhe assento e atendeu a mulher que certamente poderia ser chamada de dama.A bela senhora se apresentou:- Bom dia, chamo-me Catarina Fernandes!Felipa jamais esqueceria esse nome, bem como a mulher.Tentava lembrar-se da data em que conheceu Catarina, não podia ter-se esquecido, forçou a memória, finalmente lembrou o ano, 1583. Fazia tempo...A mulher perguntou se poderia lhe confeccionar um vestido. E que se aprovasse o corte faria mais alguns, porém a confecção teria que ser rápida, no máximo em um mês.Felipa, cheia de curiosidade, perguntou-lhe:- Não que seja do meu interesse, mas por quê a pressa?Catarina contou-lhe que era casada com um comerciante de pedras preciosas, eram do Recife e que estavam indo embora do Brasil dentro de dois meses. Moravam aqui há quase dez anos, tinham uma situação financeira muito boa, e por isso podiam dar-se ao luxo de fazer essa viagem.Muito confusa Felipa não entendia nada, e na sua simplicidade voltou a perguntar:- Por quê sair desta terra? Não está sendo generosa com vocês? Pelo que me disses, vivem muito bem.A resposta foi como um soco no estômago. Catarina olhou dentro dos olhos da moça e disse:- Somos judeus!Felipa assentiu com a cabeça e procurou não demonstrar nenhuma reação. Lembrou-se dos sermões que os padres faziam, de como acusavam aquele povo de hereges. As piadas contadas nas ruas, o preconceito. Como outros, tinha aprendido a manter-se afastada dos judeus, que o padre dizia serem um povo pagão e demoníaco.Olhava aquela mulher e procurava a maldade que todos falavam... Algo como piedade lhe tocou o coração, gostaria de poder ajudar aquela senhora.Colocou-se à disposição de dona Catarina Fernandes, sem parar para pensar. E se indagava:“Sair daqui para onde? Não seriam sempre perseguidos? Que importava o lugar que fossem?”.E Catarina continuou a explicar a situação para a moça:- Vamos embora do Brasil! Com os inquisidores cá, já não há nenhum lugar seguro.Percebendo que nada mais tiraria da mulher a não ser as medidas, começou o seu trabalho, conferiu a metragem do tecido, escolheram o modelo. Disse-lhe que estaria pronto para a prova dentro de uma semana, e que ela poderia escolher o horário que lhe fosse mais conveniente.Tudo acertado, a mulher despediu-se, agradeceu e desapareceu pela porta.Por conta da maldade alheia, pensou em manter a identidade de Catarina em segredo, afinal era apenas mais uma mulher, como tantas que entravam em sua casa em busca de seu serviço.Uma semana depois, no horário combinado, Catarina entra no quarto de costura de Felipa para a primeira prova do vestido. Ficou perfeito. A senhora mostrou-se muito satisfeita com sua habilidade na arte da confecção. Perguntou a moça se teria condições e tempo para assumir mais quatro peças e lhe entregar no prazo de um mês.Com o desejo firme de poder ajudá-la aceitou sem objeção alguma, mesmo que atrasasse os compromissos já assumidos, inventaria uma desculpa. Naquele dia pouco falaram, apesar das indiretas da costureira.Terminada a prova e os acertos finais, passaram a tratar da confecção dos demais. Tudo combinado, ela voltaria em uma semana para experimentá-los.Curiosa, passou a fazer perguntas a respeito desse povo perseguido para as pessoas em quem confiava, mas todos eram unânimes em afirmar que eram pagãos e deveriam queimar na fogueira da Santa Inquisição.No dia combinado, Catarina apareceu para finalizar o tratado. Sentia o interesse da moça a respeito de sua vida. Depois de tudo feito, a mulher lhe disse:- Sente-se, vamos conversar um pouco.A moça simples, de reações transparentes, arregalou os olhos, mal agüentando a espera do que iria lhe ser dito.- O meu povo veio para cá mais ou menos no ano de 1530. A vida na Europa estava um verdadeiro inferno, conforme deves saber, devido à perseguição que sofremos pelos simpatizantes da Inquisição. Portugal até não nos perseguia tanto e abriu-nos uma porta, um caminho diferente para os que quisessem sair da Europa e procurar vida nova em novas terras. Isso foi como olhar a vida novamente com as esperanças que já não tínhamos nos nossos corações. Desde que aqui chegamos trataram-nos muito bem, pudemos exercer a nossa prática religiosa sem nenhum problema. Construímos duas sinagogas no Recife. Viemos em grande número. Trabalhamos com afinco, fizemos fortuna, vivíamos tranqüilos. Agora os tempos são outros, o nosso dinheiro, conquistado à custa de muito esforço, interessa aos cofres portugueses. Já está a fechar todas as saídas para o meu povo poder sair daqui, querem estabelecer uma Inquisição como na Europa. O medo voltou a assolar-nos, muitos já se foram, é uma viagem complicada, na realidade é uma fuga. Mas, Felipa, peço-te para nada contares sobre isso ou sobre mim, nem ao teu marido.Felipa, de volta à realidade de sua cela, lembrou que a fuga de Catarina tinha lhe dado o primeiro sentimento de revolta contra a Igreja e a tal da Santa Inquisição.Hoje se recordava dessa passagem com uma certa inveja.“... ela, pelo menos, conseguiu fugir das mãos destes carrascos”.Voltando ao passado, perguntou à mulher:- Para onde vão desta vez? Há algum lugar seguro? – e esperava a resposta com uma certa agonia.- Felizmente há, mas, por favor, insisto, não comentes nada com absolutamente ninguém.- Nada irei dizer D. Catarina, podes ficar tranqüila - respondeu.- Já ouviste falar na América do Norte, a de Colombo? – a moça afirmou com a cabeça. – É para lá que iremos, a maioria da população é de cristão-novos e a nossa presença não os incomoda, eles também sofrem a mesma perseguição, a nossa intenção é fixar moradia numa cidade de nome Nova Holanda. Acredito que será muito melhor para nós mantermo-nos afastados dos católicos. Sinto que mais uma vez se está repetindo o caminho dado por Deus a Moisés, vamos no maior número que pudermos. Será mais um êxodo nosso.Ao final do desabafo da mulher, Felipa estava com lágrima nos olhos, pensando em como se podia tratar um povo assim.No dia da despedida, Catarina prometeu mandar notícias e trocaram um longo abraço, como que sabendo que jamais se veriam novamente.Soube depois que muitos judeus haviam sido perseguidos e condenados por aquela intolerância, bem comum aos que comungavam a fé católica.Queria muito saber como ela estava. Durante um tempo trocaram correspondências, mas a pedido da amiga pararam, pois Catarina sentia medo, mesmo não estando mais no Brasil.Pensando na sorte de Catarina Fernandes, conseguiu adormecer.

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