No momento em que padre Pedro tomou ciência da decisão dos seus superiores viu que lhes restava pouco tempo, e não sabia o quanto seria necessário para que Felipa acabasse de se confessar. Ainda tinha esperança de que ela se arrependesse.Dirigiu-se rapidamente para a prisão, teria que contar o que estava acontecendo. Quanto tempo teriam ainda para poder terminar o que haviam começado?Ao chegar cumprimentou-a e foi despejando a triste notícia:- Teremos apenas mais dois dias, Felipa, o seu inquisidor já se encontra em Salvador.Ela sabia que ouviria essa triste notícia mais cedo ou mais tarde. Resignada, disse:- Estou com medo, padre! Muito medo, sei que me vão bater, sei que vão fazer horrores comigo, tenho medo!!!O padre sabia a aflição que a mulher sentia, mas estava para além das suas forças mudar o seu destino. Perguntou:- Quer continuar com a sua confissão?Felipa foi incisiva:- Claro!!! Quero que tudo fique bem documentado para as pessoas que quiserem ler, e sei que curiosos são o que não vai faltar.O padre lembrou-lhe:- Filha, esta confissão não vai a público, é do poder da Igreja. Apenas se você fizer um ato de confissão perante o público, pedindo perdão pelos seus pecados, é que saberão a sua verdade.- Já disse ao senhor, não me arrependo, morro sem abrir a boca, mas não me arrependo de ser o que sou e de ter amado quem amei: Lise. Que seja da maneira que a Igreja manda, mas isso ficará registrado para sempre, não é verdade?- Nos tribunais, sim, para sempre.- Então que a minha história fique lá para sempre. Quero continuar, podemos?- Claro - afirmou o padre.- Depois que cheguei do Recife, a minha vida voltou à rotina de sempre. Passei a trabalhar mais para preencher o vazio que sentia, cheguei a passar noites em claro terminando o meu serviço. E a vida seguiu na sua toada. Eu com Francisco, ele sempre chocho, nós quase nem nos falávamos, mas era mesmo por falta de assunto.Certo dia eu tinha uma entrega para fazer não muito longe de casa. Embrulhei o vestido e dirigi-me à casa de Anita, a minha cliente. Bati à porta e uma mulher atendeu, fato que estranhei, porque Anita tinha uma negrinha para fazer o serviço, e quem abriu a porta não tinha nada de negrinha. Era uma linda mulher, mas eu nem quis prestar muita atenção para não atiçar a carne. Muito falante e simpática perguntou quem eu era, expliquei que só passara por ali para entregar uma encomenda de costura. Queria que eu entrasse, mas eu não, entrar não, nem a Anita me tinha convidado para isso e nem era esse o motivo de eu estar ali. Agradeci e fui embora sem deixar de pensar naquela mulher. Linda, olhos vivos, alegre, não era mais nova que eu. Tinha quase a minha altura, cabelos pretos iguais aos meus, mas com um brilho que parecia cetim. Ela impressionou-me, e muito. Fui embora sem saber o nome dela.O padre anotava cada palavra que Felipa dizia:- Acho que se passou uma semana, é, uma semana, quando ouço baterem na minha porta. Isso não era comum, ninguém recebia visitas àquela hora, era hora de trabalho. Saí do quarto de costura sacudindo os fiapos de linha da minha roupa e fui atender. Qual não foi a minha surpresa, quem estava lá na porta da minha casa? A tal mulher! Pensei comigo mesma que aquilo não ia acabar bem. Cumprimentei a mulher, e como não estava entendendo o que ela fazia ali, fiquei calada. Ela perguntou - Você não me vai convidar a entrar? Só aí dei conta da falta de educação, e nesse instante pedi que, por favor, entrasse, e desculpei-me explicando que estava meio atordoada. Passou por mim e foi entrando com um jeito gracioso de andar. Eu não queria padre, juro que não, mas ela era tentação pura, e sabia disso.Lembrei-me que não sabia o nome dela, apresentei-me e disse o meu nome, ela respondeu que já sabia, Anita tinha-lhe dito, e apresentou-se dizendo o seu nome - Paula. É... Paula... Era um lindo nome! Ela sentou-se e, desinibida como poucas pessoas que conheci, começou a conversar. Tudo era fácil com ela, tinha capacidade de fazer com que as pessoas rissem e a ouvissem com atenção, ela era especial. Como também sempre falei muito demo-nos bem, mas algo nela era estranho. Ela parecia um anjo, mas havia alguma coisa errada naquele anjo, parecia não ser tão anjo assim. Tornamo-nos amigas, mas eu nunca lhe disse nada a respeito das minhas preferências.Felipa deu alguns passos como que para aliviar a tensão e voltou a falar:- Passamos a encontrar-nos constantemente para tomar chá, comer, conversar, até passear. Um dia, depois de um passeio, fomos para minha casa. Era cedo ainda, e sem mais nem menos Francisco chegou. Ele não costumava voltar cedo, perguntei-lhe se estava tudo bem e ele disse que sim, que só tinha vindo buscar uma coisa que se havia esquecido em casa. Entrou, foi para o quarto dele, pegou o que queria e saiu. Eu virei-me para Paula, para que continuássemos nossa conversa, quando me deparo com uma cara completamente assustada.Sem entender, perguntei-lhe o que houve. Ela virou-se para mim e perguntou: - É casada com esse velho? - Infelizmente tive que responder que sim, pela primeira vez senti vergonha do Francisco.A conversa que se seguiu foi por demais vulgar, não sei se para mim ou para qualquer um que ouvisse. Com a maior naturalidade do mundo ela contou-me que tinha um amante. Ainda bem que estava eu sentada, não esperava ouvir aquilo dela. Mas não parou ali. Disse que ele era um escravo negro, e perguntou: - Sabia que os negros são mais bem dotados que os brancos? - Eu não podia ser moralista, era pedir demais da minha pessoa, mas ouvir assim uma história tão particular de uma pessoa que era minha amiga, nada mais do que uma amiga, assustou-me. Pensas que parou aí? Não parou, continuou: - Não podes imaginar o que é sentir aquele homem dentro de si. - Naquela hora a minha boca escancarou-se, se arrependimento matasse eu teria caído morta ali. E eu disse: - Não gosto de homens. - Ela arregalou os olhos e perguntou - Como assim, não gosta de homens?Felipa remexeu-se, parecia estar desconfortável, mas queria continuar.- Eu disse-lhe que não gostava de fazer sexo com homens, e ela insistia: - Como não? Faz com quem, então? Ou não faz? - Sem perceber, a minha boca falou de novo: - gosto de mulheres. Ela soltou um gritinho e perguntou-me: - O quê? Você faz sexo com mulheres? Mas isso não é possível!!!Padre, eu juro que não queria dizer mais nada, mas ela não parava de falar. Então eu disse: - Para quem sabe e gosta não há nada melhor. - Bastou!!! Ela sentiu-se instigada, tinha uma curiosidade que não era apenas das coisas normais, tinha uma tara por sexo que era anormal. Queria saber tudo, como era, o que sentia, como fazia. Eu não estava acostumada àquilo, nunca havia falado da minha vida íntima a ninguém. Constrangiam-me aquelas perguntas todas. Respondi aquilo que achava que podia responder.A partir daquele dia, a minha vida mudou. Ela queria, ou melhor, ela queria-me, e tentava seduzir-me de todas as maneiras. Eu não queria fazer nada errado, ela era mulher casada com um funcionário do governo, tinha chegado a Salvador há pouco tempo, vinda do Recife, eu não queria, mas o senhor sabe, a carne... O marido passava o dia a trabalhar e ela sempre a chamar-me para ir a casa dela. Eu já sabia porquê, no fundo até gostava, afinal nunca havia acontecido aquilo comigo, estava a ser seduzida e por uma linda e perfeita mulher, perfeita assim pela carne, o senhor entende.Felipa precisava contar as coisas muito rápido, só teriam mais um dia para isso. E despejava! Muitas vezes ficava até difícil para Pedro acompanhá-la na escrita.- Pois, um dia aconteceu, e ela gostou, e muito. Não posso dizer-te que não foi o que eu queria, muito pelo contrário, ali era eu que ensinava como me amar, e ensinei. Mas ela superou a professora, passou a fazer coisas que me deixaram completamente dependente dela sexualmente. Tornei-me um fantoche nas suas mãos. O pior é que eu sabia não ser a única amante dela, ela queria tudo, sem se importar se era homem ou se era mulher. Devo dizer ao senhor, ela sabia o que fazia. Aquilo consumia-me, sabia que não era amor, era vício, o vício de poder tê-la ao meu lado, de tocá-la, eu estava quase enlouquecendo. Sentia ciúme dos seus outros casos, mas ela sabia lidar com os brinquedos que possuía nas mãos.Certo dia ela precisou de acompanhar o marido até ao Recife, onde ficou por mais de um mês. Eu escrevia-lhe cartas expondo-me e contando a falta que ela me fazia, e fazia mesmo, até o Francisco reparou que eu estava fora do normal. Muitas cartas, padre, muitas... Quando ela regressou, passamos momentos de enlouquecer juntas. Eu sabia que tudo estava errado, que não era assim, que aquilo não era amor, era um sentimento quase animal. Eu devia sair de Salvador por uns tempos, precisava disso, e - foi Deus ou não - recebi uma carta de Quitéria chamando-me para visitá-la novamente.Disse à Paula que iria visitar uma amiga ao Recife. Padre, nem queira saber a reação que ela teve, pois sabia do meu caso com Quitéria, eu tinha-lhe contado. Teve um acesso de raiva, ameaçou quebrar tudo que estava à sua frente. Eu insisti que iria, que precisava de ir, tinha que ir, e ela disse que se eu fosse me arrependeria.Eu pensei - como? Tudo o que fizemos foi juntas. Se eu me arrependesse, ela haveria de estar expondo a sua vida, e isto ela não faria. Foi ali que vi o tipo de anjo que era aquela mulher. Paula não parava de ameaçar-me, e aquilo foi ficando desagradável. Eu lembrei-lhe que, se me expusesse, iria para a lama comigo. Ela apenas riu, riu na minha cara e disse: - Felipa, o que é meu é meu para sempre, não é de mais ninguém.Sinceramente, padre, eu não podia levar aquilo a sério. Depois de rompermos, eu soube que ela costumava visitar uma feiticeira, e que a mulher lhe ensinava como manter as pessoas “viciadas” nela. Achei um absurdo, nunca imaginei Paula ligada com essas coisas, mas como ela não era normal, pode até ser verdade.O padre começava a entender como Felipa tinha acabado ali. E ficou pasmo diante da tamanha frieza de Paula. Ele a conhecia das acusações, nunca pensaria aquilo daquela imagem de “anjo” que realmente tinha. Estava chocado.A porta se abriu e o tempo do penúltimo dia estava acabado.
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
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