quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO VII

Chovia torrencialmente na cidade, mas isso não atrapalhou a venda de escravos que estava acontecendo, o mercado não podia parar. Os negros estavam debilitados em decorrência da viagem, e os mercadores sabiam que quanto mais tempo demorasse a venda, menor preço alcançariam.O tempo ruim só fazia o clima ficar cada vez mais abafado, um calor úmido, sufocante, atormentava a vida das pessoas.Dentro da prisão o calor era pior, as paredes grossas, a falta de janelas e de ventilação fazia daquele lugar quase que o próprio inferno. Nem os guardas, sempre impecavelmente vestidos, estavam agüentando, abriam os colarinhos, procuravam abanar-se para aliviar o abafamento do lugar.Felipa sonhava em poder sair e se molhar na água que descia do céu de maneira violenta, queria se sentir limpa, pelo menos em seu corpo.Tinha aproveitado bem as coisas que tinha recebido, pouco restava do conteúdo da cesta que o padre lhe levara.O calor já não a incomodava mais, nada a incomodava mais. Agora que tinha começado a contar para o padre o que estava preso em seu coração todo esse tempo, nada mais tinha importância. Sabia que tinha que falar, não teria nada que a fizesse se livrar daquela situação, ela confiava nele, quem sabe falando não se sentiria melhor?O padre chegou mais cedo que de costume. Felipa estranhou, talvez fosse o tempo que o tivesse feito se apressar.Entrou molhado, e batia na batina como se isso fosse secar sua roupa, foi até à porta, pegou a cadeira e puxou para perto de Felipa. Começou a conversar trivialidades.- Está a chover forte, o calor está insuportável, quase não conseguia chegar cá...Estranhou o comportamento do padre, afobado, coisa que ele nunca tinha demonstrado, será que era a curiosidade, pensou, fosse o que fosse ele estava ali e ela continuaria até o fim!- É, percebi que chove muito mesmo – respondeu. O senhor correu muito para cá chegar? Parece-me um pouco nervoso.O padre, sem graça, respondeu:- É, corri, sim, e cansei-me, por isso estou assim, desculpe.Felipa encolheu os ombros sem que o padre percebesse, mas algo ficou no ar.- Como passou a noite, minha filha?Mais uma vez estranhando a falta de intimidade, respondeu:- Apesar do calor, bem, já comi quase tudo o que tinha na cesta, o senhor agradeceu Francisco por mim?- Sim, claro!- Obrigada, queria continuar a falar, necessito de falar, entende-me?- Entendo-te sim, entendo-te perfeitamente. Continue...Felipa ajeitou-se e continuou onde tinha parado.- A minha amizade com Elise foi crescendo. Apesar de rica ela nunca se importou com isto, passeávamos pelas ruas, fazíamos cestas de comida e íamos comer perto do mar, sempre conversando muito, ela sempre muito compreensiva comigo, acho que entendia a minha carência, apesar de eu perceber que ela também era carente, mesmo com tudo o que possuía. O marido havia morrido num combate com os índios, ela fazia o que tinha que fazer, sozinha com um administrador, era sabida como um homem para os negócios, ninguém passava Elise para trás não, possuía tino para fazer essas coisas. A nossa amizade era especial, na verdade nunca tinha tido uma amiga de verdade.Evitando o olhar do padre, continuou.- Francisco sabia que éramos amigas e que eu passava o meu tempo de folga com ela, nunca se incomodou com o fato, pelo contrário, incentivava a nossa amizade, dizia-me que ela fazia-me bem, que já não pensava tanto no filho que não podia ter, nem lamuriava-me com ele sobre isso. Mas um dia... - Felipa parou no meio do pensamento como que recordando o dia – um dia ela convidou-me para almoçar na casa dela, como de costume eu fui, cheguei mais cedo, não tinha nada a fazer mesmo e passar o tempo com ela era muito agradável. Bati à porta, a escrava da casa pediu-me para entrar, entrei e a moça pediu-me para esperar que ia avisar que eu já havia chegado. Voltou e disse para eu subir, que ela não se estava sentindo muito bem. Eu preocupei-me, sempre preocupava-me com a saúde dela, comia pouco, e dizia que não queria parecer uma matrona, mas toda a gente precisa de comer, e ela comia como um passarinho. A rapariga acompanhou-me até ao quarto, abriu a porta para eu entrar, fui entrando já zangada e dizendo que devia ser falta de comida, quando olhei para a cama, ela lá estava quase nua. Virei os olhos o mais rápido que pude. Foi um choque para mim, ao mesmo tempo sentia um calor subir-me ao rosto, o coração bater mais forte.Felipa não conseguia mais olhar o padre, cada vez abaixava mais a cabeça para poder continuar.Ela disse-me – que foi? - Eu disse - põe a roupa mulher, estás quase nua!!! Ela respondeu-me - é o calor, acho que me deu moleza. Como eu queria voltar os olhos para vê-la! Na posição em que eu estava só vislumbrava o lençol de seda na cama, era branco - ela parecia-me uma princesa, tão linda no meio daquela cama, seminua – montes de almofadas apoiavam o seu corpo. Chamou-me de novo e disse: - Vem cá, senta aqui - eu resistindo ao que parecia ser mais forte que eu dizia - não!Olhou sem graça para o homem ali sentado, ouvindo tudo que tinha de mais íntimo em seu coração.- Queres que eu pare?- Não, falas que te fará bem.E voltando para dentro dos seus pensamentos mais íntimos, continuou:- Ela chamou-me novamente, não resisti, sentei-me à beirada da cama e tentei manter-me o mais afastada possível. Ela sabia sempre conseguir o que queria, tinha uma maneira a pedir as coisas que era impossível negar. Quase caí da cama algumas vezes, até que ela segurou na minha mão e disse – dói aqui – mostrando-me o pescoço, e pediu – faz-me uma massagem, quem sabe a dor passa e já descemos. Eu concordei, mas para fazer a tal massagem tinha que me chegar perto dela, e a minha respiração já não estava normal. Pensei “isso que ela está sentindo deve ser contagioso, já estou doente como ela”, e fui-me sentar mais para o meio da cama enquanto ela virava-se de costas para eu poder massajar-lhe o seu pescoço.O cheiro dela embriagava-me. Ela deu-me um vidrinho com um óleo cheiroso e pediu-me para usá-lo. Molhei as mãos e comecei a espalhar o óleo no pescoço de Lise - pois é... depois eu comecei a chamá-la assim. Fui fazendo o que eu sabia, afinal eu não entendia nada daquilo. Sabia que o que estava a fazer não era massagem, eu já nem sabia o que era. Era mais que carinho, sentia cada pedaço do meu corpo querendo tocar-lhe a pele. Foi ai que ela virou-se para mim e me disse “eu sabia, sabia que ias acabar amando-me como eu te amo” - e beijou-me.Não posso descrever-te o que senti, porque era a primeira vez na minha vida que de fato me sentia mulher, completa, sem vazios, entreguei-me aquele beijo completamente, como se nada além de nós duas existisse no mundo, perdi a noção de tudo, estava pela primeira vez na vida apaixonada e era por uma mulher, exatamente como eu. Nada havia sido tão lindo e tão intenso quanto aquele momento que passei com Lise. Nós amamo-nos, como jamais havia amado e entregue a alguém, sentia que ela também estava entregue àquele sentimento por inteiro.Visivelmente chocado, o padre queria negar o que tinha ouvido, não queria acreditar que fosse verdade, mesmo que já soubesse, não!!! Ela tinha que dizer que aquilo não tinha acontecido. Se não, tudo o que diziam daquela criatura tão frágil seria verdade. Queria sair dali, não olhá-la com repulsa, mas havia se comprometido, havia dito que a ouviria, não!!! Mas sabia que ela iria continuar, e teria que ouvir mais e mais. Quanto tempo agüentaria?? Sua vontade era sacudir Felipa e fazer com que dissesse que era mentira, que aquilo era uma peça que ela estava pregando a ele. Ouviu que ela estava falando outra vez, e tentou ater sua atenção ao que dizia.- Depois daquele dia tornamo-nos amantes e amigas. Não pense que foi-me fácil admitir que a amava mais que tudo na minha vida, a culpa assolava-me a todo instante, por mais que ela dissesse-me para não pensar em nós como uma relação errada, eu não conseguia. Passei a não dormir direito, mal comia, atormentava-me, mas pensava em estar com Lise o dia todo, costurava pensando nela, tudo o que fazia os meus pensamentos estavam voltados para ela.Foi quando resolvi conversar com Francisco, dizer-lhe o que estava a acontecer. Eu tinha a minha consciência, sabia que aquilo não era correto, necessitava abrir o meu coração. Um dia estávamos a almoçar e, como quem nada quer, disse-lhe – Sabes a Lise? – ele virou-se surpreso e disse – Claro que sei, vocês dão-se tão bem, isso deixa-me feliz. - Eu continuei ­– Acho que a gente se dá bem demais. - Ele nem demonstrou nada, sentimento nenhum, foi como se eu dissesse vai chover, mas eu continuei – Presta atenção!!! Eu acho que temos mais que uma amizade! - Ele olhou para mim e perguntou – Como assim, Felipa? O que poderia haver mais que uma amizade? - Respondi de uma só vez – Estamos apaixonadas, eu por ela e ela por mim.Eu penso até hoje se ele entendeu, pois não disse uma palavra e continuou a comer. Fiquei à espera de uma reação, qualquer uma, mas nada. Ele agiu como se eu nada tivesse dito, continuei a encontrar-me com Lise da mesma forma e com a aprovação dele. Queria que o senhor me entendesse, eu tinha contado ao meu marido e ele não recriminou-me, não bateu-me, não humilhou-me, não me pôs na rua, tratava-me da mesma forma, não só a mim como à Lise também, ele tratava-nos da mesma forma, o que o senhor queria que eu pensasse? Nunca entendi. E não entendo até hoje, mas passei a aceitar como ele aceitou. Se ele não me culpava, padre, quem poderia culpar-me, ele era o meu marido e aceitou!!!Pela primeira vez o padre lhe fez uma pergunta a esse respeito.- Há quanto tempo foi isso, minha filha? - O “minha filha” foi muito difícil de dizer, mas tinha que continuar a ouvi-la.- Foi há seis anos, padre.- Sei... E onde é que ela está?A pergunta deixou-a confusa, e disse:- Não sei por onde anda. Foi embora daqui há quatro anos.- E nunca mais a viu?Irritada com o tom de interrogatório, responde:- Nunca, e mesmo que soubesse onde ela está jamais falaria, como sei que ela jamais falaria algo a meu respeito. Estou abrindo-me com o senhor por necessidade, até de colocar todas as minhas dores cá fora antes que o pior aconteça comigo. Entendeu padre?Percebendo que havia ido além do que devia ele ficou quieto e acabou se desculpando pela insistência.- Eu disse-te que não vim julgá-la, e cá estou para ouvi-la - tentou convencê-la.- Bem, obrigada por pensar assim, já fui mais recriminada do que poderia suportar, e sei que esta história ainda não acabou.Pensando no que ainda estava por vir perdeu a vontade de continuar a conversa, queria imergir nos seus próprios pensamentos, e sozinha.- Por favor, se o senhor não se incomodar, poderíamos continuar a conversar amanhã? Eu tive um dia cheio de lembranças e gostaria de estar sozinha.- Não tem problema, filha, amanhã eu aqui estarei e, com certeza, você estará mais tranqüila. Entendo que queira ficar só.Levantou-se da cadeira, bateu na pesada porta, chamou o carcereiro, entregou-lhe a cadeira e saiu.

Um comentário:

tm disse...

Ola Patrcia gostaria muito de falar com vc sobre seu livro, Marcus Tozini tozinim@yahoo.com
Aguardo seu email. Abracos, Marcus