Na manhã seguinte acordou com o corpo dolorido, lembrando-se da conversa com o padre, esperando que ele viesse outra vez.No horário mais ou menos esperado ele chegou. Percebeu a receptividade de Felipa e sentiu-se feliz, embora ela tentasse manter-se afastada.Aparentando estar preocupada, ela pergunta:- O senhor não cansas-te de me ouvir?Arrastando a cadeira, que mais uma vez o carcereiro lhe trouxe, e meneando a cabeça rapidamente, ele responde:- Não, minha filha, de maneira alguma, estou aqui para isto mesmo, queres continuar?- É muito estranho o senhor chamar-me de minha filha, tão mais moço do que eu. Tenho muito o que falar mesmo, falar do passado faz com que eu me sinta viva, e o que eu mais preciso neste momento é sentir que ainda vivo, mesmo que seja do passado, e mesmo que não saiba até quando. Aonde eu ia? Na Quitéria!!! Pois bem, mesmo que não pudéssemos ver-nos um dia, mais tarde encontramo-nos. Ela não sumiu da minha vida. Sabes que eu agradeço por ter aprendido a costurar com a minha mãe antes de casar, e tão cedo! Se fosse mais tarde...A curiosidade sobre o que ela falava levou o padre a perguntar:- O que houve minha filha, a tua mãe faleceu tão jovem?Com um leve sorriso, ela respondeu:- Não morreu, padre – e interrompeu, num clima de suspense – fugiu com o Capitão Albuquerque.Lembrando do fato, esqueceu-se de que o padre a ouvia atento.Agindo como uma boa fofoqueira, os olhos mais abertos do que o normal, ele abaixa-se um pouco e pergunta:- Como é ? Fugiu? Como assim, fugiu?Felipa não consegue conter o riso, coisa que não fazia muito ultimamente, e desata numa gargalhada.Só então o padre se dá conta do papel que havia feito. Pede mil desculpas, diz que jamais havia feito aquilo na vida, tece uma ladainha das suas virtudes e cala-se.Ainda sorrindo, Felipa continua a contar:- Lembra-se que eu disse que a minha relação com o Capitão era muito parecida com a de uma filha? Pois a da minha mãe era bem outra. Ela apaixonou-se por ele na vinda para cá. Mas só fugiram depois que eu me casei. O meu pai não era um bom marido, vivia largando a minha mãe e passando a noite toda na companhia de mulheres soltas na vida. Eu ouvia a minha mãe a chorar sozinha no quarto, ela sofreu muito com isso. E foram anos e anos. Assim que eu me casei, ela fugiu.Fita o padre e pergunta:- Queres saber sobre meu casamento e a fuga da minha mãe?Muito discretamente, ele diz que sim.- Como quase todas as meninas, casei-me muito cedo, aos dezesseis anos. O meu pai arranjou o meu casamento, o meu noivo era muito mais velho do que eu, uns vinte anos, acho eu. O meu pai dizia sem parar que eu tinha que ajudar a povoar a colônia. Povoar!!! Queria que eu tivesse dez filhos, dizia. Dez!!! Não tive nenhum, padre, nenhum!Completamente descontrolada Felipa desatou a chorar. Agarrou-se às próprias pernas, as lágrimas correndo pelo seu rosto como um veio d’água que estivesse lavando a alma, as feridas de toda uma vida.Ficam em silêncio por algum tempo.Passada a crise, enxugou o rosto com o lenço que o padre lhe estendia e continuou:- Falava de minha mãe... Durante todo este tempo ela nunca esqueceu o Capitão. Às vezes eu via que ela olhava longe, o mar para ela era um refúgio, os seus olhos fitavam as ondas como se elas fossem trazer-lhe alguma coisa, mas eu não sabia o que era. Em certos dias, quase que marcados, a minha mãe saía sem dizer aonde ia, e eu perguntava-me – onde será que ela vai? – A minha curiosidade sempre foi muito grande, num destes dias não me agüentei, segui a minha mãe. Ela arrumou-se toda, nunca tinha reparado como ela era bonita, disse que ia sair, fui atrás dela. Eu ainda não tinha dezesseis anos nessa época. Fui seguindo para ver aonde ela ia, não parou em lugar nenhum, ia andando em direção ao cais. De repente estancou em cima de uma pedra, morro, sei lá o nome daquilo, e ficou a olhar o mar. Naquele momento não entendi nada, pensei: deve ser saudades de Portugal.Um brilho nos olhos de Felipa traduzia a emoção que sentia ao falar:- Mal sabia eu o que o mar trazia para ela. Os seus olhos tinham um brilho diferente, brilho que eu nunca tinha visto igual. Era felicidade, padre, pura felicidade, vi pela primeira vez a minha mãe feliz, era real, já não eram aqueles olhos tristes do dia-a-dia, eram olhos de pura poesia. Estava imersa no olhar da minha mãe quando a vi abrir um lindo sorriso. Mas eu não via nada, ela estava sorrindo e olhando para baixo. De repente, quem eu vejo subindo de encontro à minha mãe? Pois é, eu soube naquele instante, pelo tamanho do homem, que era o Capitão. A princípio tenho que confessar que fiquei chateada, afinal era de mim que ele gostava. Como filha, mas gostava. Não estava preparada para ver o que vi, eles abraçaram-se e o homem ali na minha frente beijou a minha mãe. Não que eles soubessem que eu estava lá, mas eu sabia, eu estava vendo. Os dois deram as mãos e foram andando, afastando-se da pedra, eu atrás. Vi quando pararam à frente do alojamento do Capitão. Eu não sabia o que fazer, não sabia se chamava o meu pai, se ia lá e mostrava-me para os dois, o fato é que virei às costas e disse para mim mesma: que sejam felizes, afinal o meu pai não a faz sorrir, nunca se importou com a felicidade da mulher dele. Vivia em bordéis com rameiras de rua, não seria eu que iria tirar a única coisa na vida que a fazia feliz. Na época, eu não sabia bem o que era aquilo que vi nos olhos dos dois. Hoje eu sei, padre, era amor, amor de verdade.Lembrou-se de quantas vezes olhou a mãe sem entendê-la, antes de saber do Capitão.- Como eu dizia, casei-me muito cedo. Durante a viagem para cá, o meu pai fez amizade com um dos que, como nós, estava vindo para o Brasil. Lembro-me que não tinha trazido a família com ele, dizendo que assim que se instalasse mandaria buscá-los. O nome do homem que viria a ser meu sogro era Jacinto. Realmente, depois que se acertou aqui mandou buscar a mulher, D. Inocência, e seus dois filhos, Ambrósio e Francisco. Este último, mais tarde seria o meu marido.Na idade de me casar, o meu pai e seu Jacinto fizeram os acertos para que eu e Francisco ficássemos noivos. Lembro-me perfeitamente desse dia! Eu estava linda, padre, a minha mãe ajudou-me a vestir, mas quem havia costurado o vestido era eu. Era lindo, cor-de-rosa. Eu havia tentado ver de perto o homem que seria meu marido, mas não conseguia, o senhor sabe que mulher não anda sozinha para não ficar com má fama. Precisei esperar para conhecê-lo só no dia do noivado.Quando entrei na sala estavam sentadas as duas famílias, a minha e a dele. Eu não sabia o que fazer, não sabia como era a cara dele. Fiquei ali parada, empacada igual a uma mula, com um sorriso pregado na cara. Acho que não mudaria de lugar nem que alguém me chacoalhasse. Até a Deus eu pedi uma ajudinha, queria que Ele me dissesse: É aquele ali, minha filha. Mas que nada. O meu pai veio na minha direção, segurou a minha mão, colocando-me diante do Francisco, disse: - Minha filha, este é o seu futuro esposo, Francisco. - Pense bem, padre, eu, com dezesseis anos, a olhar aquele homem feito parado na minha frente, muito mais velho do que eu! Olhando para mim como se estivesse apaixonado, daí virou-se para o meu pai e disse: - Seu Manuel o senhor concede-me a mão da sua filha para matrimonio? - Eu não sabia sequer o que era conceder. Rapidamente o meu pai respondeu: - Claro que sim. - Será que ele tinha medo que eu fugisse?Olhando para a sua mão, Felipa observou a marca do anel.- O meu noivo tirou um anel de dentro de uma caixinha, dizendo ter sido da avó, e entregou-me. Marcamos a data do casamento para dali a dois meses.O casamento foi bonito como o meu noivado, só que com muito mais gente. O meu vestido era uma beleza. Eu até gostava do Francisco, ele era bom para mim. Acabada a festa, fomos para a casa que seria nossa, ficava ao lado da padaria, eu contei-lhe que ele era padeiro? Pois era, e dos bons. A minha primeira noite foi como as demais que tive com ele, eu não podia tirar a roupa porque era feio, ele tinha que ajeitar-se em cima de mim com aquele camisolão, eu vestida até ao pescoço. Isto é muito estranho, padre, não consigo entender, podia-se usar menos roupa nessas horas.A reação do padre foi de espanto, já que a maioria das mulheres concordava com aquela atitude de pudor.- Uma semana depois de casada, a minha mãe foi embora sem deixar endereço, nem para mim, nem a ninguém. Eu entendi padre, sabia que o que eles sentiam era amor, amor real não pode ser errado. O meu pai sentiu falta dela só nos primeiros dias, tenho a impressão de que muito mais por não ter agora a mulher que lhe arrumava as coisas - não sentia falta da mulher com quem casou. Acho que esta terra virou para baixo a cabeça do meu pai. Não acho que a minha mãe e o Capitão fizeram algo errado, foram ser felizes, é o que Deus quer, não é?O padre tinha que lhe dizer o que constava na palavra de Deus:- Não é bem assim, Felipa, a sua mãe era uma senhora casada, tinha que respeitar os laços do sagrado matrimônio.Ela retrucou:- E o meu pai, não tinha? Por que é que ele podia fazer o que queria, sair com prostitutas, manter casa para gajas, e a minha mãe não podia ir embora com o homem que amava?O padre continuou:- Quando as pessoas casam-se fazem votos de fidelidade, e devem respeitar-se um ao outro, a mulher deve obediência ao marido. Sei que o seu pai cometeu os erros dele, não o estou a desculpar, mas a sua mãe deveria ter-se mantido fiel ao lado dele. Certos homens têm essa necessidade de procurar coisas fora do casamento, mas isso não significava que não amasse a sua mãe. Pelo contrário, a sua mãe é que amava outro homem, o amor divino é aquele que se tem no casamento.A reposta de Felipa foi dura:- Então quer dizer que, fossem quantas fossem as mulheres com quem o meu pai andasse, a minha mãe deveria ter suportado calada? Padre, nem nome de santa a minha mãe tem, já viu alguma Santa Fulana? Porque esse era o nome dela. A minha mãe é de carne e osso e tem um coração. O senhor, para ser padre, negou a carne, e não entende o que é amar alguém acima de tudo, enfrentando barreiras e preconceitos. O senhor deve saber por que é que eu estou aqui, embora eu só possa supor esse porquê. Jamais condenaria a minha mãe a estar na mesma situação que a minha por um erro do tempo, o homem certo na hora errada. Bem fez ela que foi embora daqui, senão seria bem provável que estivéssemos dividindo a mesma cela.Diante da resposta inflamada, o padre preferiu se calar. Não passaria mais sermão nenhum sobre fidelidade, pois sua conversa com a mulher poderia terminar ali. Porém lhe disse:- Muito bem, vamos continuar a nossa conversa sem nos ater a opiniões, pelo menos às minhas, mas há de prometer-me que isso ficará entre nós.Surpresa, ela perguntou:- A quem é que eu poderia dizer algo contra o senhor?A resposta fez com que se lembrasse de onde estava e o que, em breve, aconteceria:- Aos inquisidores, nos interrogatórios.Felipa entristeceu. Escutaram os ferrolhos da porta que se abria e despediram-se na promessa da volta do padre no dia seguinte.
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
CAPÍTULO II
Na manhã seguinte acordou com o corpo dolorido, lembrando-se da conversa com o padre, esperando que ele viesse outra vez.No horário mais ou menos esperado ele chegou. Percebeu a receptividade de Felipa e sentiu-se feliz, embora ela tentasse manter-se afastada.Aparentando estar preocupada, ela pergunta:- O senhor não cansas-te de me ouvir?Arrastando a cadeira, que mais uma vez o carcereiro lhe trouxe, e meneando a cabeça rapidamente, ele responde:- Não, minha filha, de maneira alguma, estou aqui para isto mesmo, queres continuar?- É muito estranho o senhor chamar-me de minha filha, tão mais moço do que eu. Tenho muito o que falar mesmo, falar do passado faz com que eu me sinta viva, e o que eu mais preciso neste momento é sentir que ainda vivo, mesmo que seja do passado, e mesmo que não saiba até quando. Aonde eu ia? Na Quitéria!!! Pois bem, mesmo que não pudéssemos ver-nos um dia, mais tarde encontramo-nos. Ela não sumiu da minha vida. Sabes que eu agradeço por ter aprendido a costurar com a minha mãe antes de casar, e tão cedo! Se fosse mais tarde...A curiosidade sobre o que ela falava levou o padre a perguntar:- O que houve minha filha, a tua mãe faleceu tão jovem?Com um leve sorriso, ela respondeu:- Não morreu, padre – e interrompeu, num clima de suspense – fugiu com o Capitão Albuquerque.Lembrando do fato, esqueceu-se de que o padre a ouvia atento.Agindo como uma boa fofoqueira, os olhos mais abertos do que o normal, ele abaixa-se um pouco e pergunta:- Como é ? Fugiu? Como assim, fugiu?Felipa não consegue conter o riso, coisa que não fazia muito ultimamente, e desata numa gargalhada.Só então o padre se dá conta do papel que havia feito. Pede mil desculpas, diz que jamais havia feito aquilo na vida, tece uma ladainha das suas virtudes e cala-se.Ainda sorrindo, Felipa continua a contar:- Lembra-se que eu disse que a minha relação com o Capitão era muito parecida com a de uma filha? Pois a da minha mãe era bem outra. Ela apaixonou-se por ele na vinda para cá. Mas só fugiram depois que eu me casei. O meu pai não era um bom marido, vivia largando a minha mãe e passando a noite toda na companhia de mulheres soltas na vida. Eu ouvia a minha mãe a chorar sozinha no quarto, ela sofreu muito com isso. E foram anos e anos. Assim que eu me casei, ela fugiu.Fita o padre e pergunta:- Queres saber sobre meu casamento e a fuga da minha mãe?Muito discretamente, ele diz que sim.- Como quase todas as meninas, casei-me muito cedo, aos dezesseis anos. O meu pai arranjou o meu casamento, o meu noivo era muito mais velho do que eu, uns vinte anos, acho eu. O meu pai dizia sem parar que eu tinha que ajudar a povoar a colônia. Povoar!!! Queria que eu tivesse dez filhos, dizia. Dez!!! Não tive nenhum, padre, nenhum!Completamente descontrolada Felipa desatou a chorar. Agarrou-se às próprias pernas, as lágrimas correndo pelo seu rosto como um veio d’água que estivesse lavando a alma, as feridas de toda uma vida.Ficam em silêncio por algum tempo.Passada a crise, enxugou o rosto com o lenço que o padre lhe estendia e continuou:- Falava de minha mãe... Durante todo este tempo ela nunca esqueceu o Capitão. Às vezes eu via que ela olhava longe, o mar para ela era um refúgio, os seus olhos fitavam as ondas como se elas fossem trazer-lhe alguma coisa, mas eu não sabia o que era. Em certos dias, quase que marcados, a minha mãe saía sem dizer aonde ia, e eu perguntava-me – onde será que ela vai? – A minha curiosidade sempre foi muito grande, num destes dias não me agüentei, segui a minha mãe. Ela arrumou-se toda, nunca tinha reparado como ela era bonita, disse que ia sair, fui atrás dela. Eu ainda não tinha dezesseis anos nessa época. Fui seguindo para ver aonde ela ia, não parou em lugar nenhum, ia andando em direção ao cais. De repente estancou em cima de uma pedra, morro, sei lá o nome daquilo, e ficou a olhar o mar. Naquele momento não entendi nada, pensei: deve ser saudades de Portugal.Um brilho nos olhos de Felipa traduzia a emoção que sentia ao falar:- Mal sabia eu o que o mar trazia para ela. Os seus olhos tinham um brilho diferente, brilho que eu nunca tinha visto igual. Era felicidade, padre, pura felicidade, vi pela primeira vez a minha mãe feliz, era real, já não eram aqueles olhos tristes do dia-a-dia, eram olhos de pura poesia. Estava imersa no olhar da minha mãe quando a vi abrir um lindo sorriso. Mas eu não via nada, ela estava sorrindo e olhando para baixo. De repente, quem eu vejo subindo de encontro à minha mãe? Pois é, eu soube naquele instante, pelo tamanho do homem, que era o Capitão. A princípio tenho que confessar que fiquei chateada, afinal era de mim que ele gostava. Como filha, mas gostava. Não estava preparada para ver o que vi, eles abraçaram-se e o homem ali na minha frente beijou a minha mãe. Não que eles soubessem que eu estava lá, mas eu sabia, eu estava vendo. Os dois deram as mãos e foram andando, afastando-se da pedra, eu atrás. Vi quando pararam à frente do alojamento do Capitão. Eu não sabia o que fazer, não sabia se chamava o meu pai, se ia lá e mostrava-me para os dois, o fato é que virei às costas e disse para mim mesma: que sejam felizes, afinal o meu pai não a faz sorrir, nunca se importou com a felicidade da mulher dele. Vivia em bordéis com rameiras de rua, não seria eu que iria tirar a única coisa na vida que a fazia feliz. Na época, eu não sabia bem o que era aquilo que vi nos olhos dos dois. Hoje eu sei, padre, era amor, amor de verdade.Lembrou-se de quantas vezes olhou a mãe sem entendê-la, antes de saber do Capitão.- Como eu dizia, casei-me muito cedo. Durante a viagem para cá, o meu pai fez amizade com um dos que, como nós, estava vindo para o Brasil. Lembro-me que não tinha trazido a família com ele, dizendo que assim que se instalasse mandaria buscá-los. O nome do homem que viria a ser meu sogro era Jacinto. Realmente, depois que se acertou aqui mandou buscar a mulher, D. Inocência, e seus dois filhos, Ambrósio e Francisco. Este último, mais tarde seria o meu marido.Na idade de me casar, o meu pai e seu Jacinto fizeram os acertos para que eu e Francisco ficássemos noivos. Lembro-me perfeitamente desse dia! Eu estava linda, padre, a minha mãe ajudou-me a vestir, mas quem havia costurado o vestido era eu. Era lindo, cor-de-rosa. Eu havia tentado ver de perto o homem que seria meu marido, mas não conseguia, o senhor sabe que mulher não anda sozinha para não ficar com má fama. Precisei esperar para conhecê-lo só no dia do noivado.Quando entrei na sala estavam sentadas as duas famílias, a minha e a dele. Eu não sabia o que fazer, não sabia como era a cara dele. Fiquei ali parada, empacada igual a uma mula, com um sorriso pregado na cara. Acho que não mudaria de lugar nem que alguém me chacoalhasse. Até a Deus eu pedi uma ajudinha, queria que Ele me dissesse: É aquele ali, minha filha. Mas que nada. O meu pai veio na minha direção, segurou a minha mão, colocando-me diante do Francisco, disse: - Minha filha, este é o seu futuro esposo, Francisco. - Pense bem, padre, eu, com dezesseis anos, a olhar aquele homem feito parado na minha frente, muito mais velho do que eu! Olhando para mim como se estivesse apaixonado, daí virou-se para o meu pai e disse: - Seu Manuel o senhor concede-me a mão da sua filha para matrimonio? - Eu não sabia sequer o que era conceder. Rapidamente o meu pai respondeu: - Claro que sim. - Será que ele tinha medo que eu fugisse?Olhando para a sua mão, Felipa observou a marca do anel.- O meu noivo tirou um anel de dentro de uma caixinha, dizendo ter sido da avó, e entregou-me. Marcamos a data do casamento para dali a dois meses.O casamento foi bonito como o meu noivado, só que com muito mais gente. O meu vestido era uma beleza. Eu até gostava do Francisco, ele era bom para mim. Acabada a festa, fomos para a casa que seria nossa, ficava ao lado da padaria, eu contei-lhe que ele era padeiro? Pois era, e dos bons. A minha primeira noite foi como as demais que tive com ele, eu não podia tirar a roupa porque era feio, ele tinha que ajeitar-se em cima de mim com aquele camisolão, eu vestida até ao pescoço. Isto é muito estranho, padre, não consigo entender, podia-se usar menos roupa nessas horas.A reação do padre foi de espanto, já que a maioria das mulheres concordava com aquela atitude de pudor.- Uma semana depois de casada, a minha mãe foi embora sem deixar endereço, nem para mim, nem a ninguém. Eu entendi padre, sabia que o que eles sentiam era amor, amor real não pode ser errado. O meu pai sentiu falta dela só nos primeiros dias, tenho a impressão de que muito mais por não ter agora a mulher que lhe arrumava as coisas - não sentia falta da mulher com quem casou. Acho que esta terra virou para baixo a cabeça do meu pai. Não acho que a minha mãe e o Capitão fizeram algo errado, foram ser felizes, é o que Deus quer, não é?O padre tinha que lhe dizer o que constava na palavra de Deus:- Não é bem assim, Felipa, a sua mãe era uma senhora casada, tinha que respeitar os laços do sagrado matrimônio.Ela retrucou:- E o meu pai, não tinha? Por que é que ele podia fazer o que queria, sair com prostitutas, manter casa para gajas, e a minha mãe não podia ir embora com o homem que amava?O padre continuou:- Quando as pessoas casam-se fazem votos de fidelidade, e devem respeitar-se um ao outro, a mulher deve obediência ao marido. Sei que o seu pai cometeu os erros dele, não o estou a desculpar, mas a sua mãe deveria ter-se mantido fiel ao lado dele. Certos homens têm essa necessidade de procurar coisas fora do casamento, mas isso não significava que não amasse a sua mãe. Pelo contrário, a sua mãe é que amava outro homem, o amor divino é aquele que se tem no casamento.A reposta de Felipa foi dura:- Então quer dizer que, fossem quantas fossem as mulheres com quem o meu pai andasse, a minha mãe deveria ter suportado calada? Padre, nem nome de santa a minha mãe tem, já viu alguma Santa Fulana? Porque esse era o nome dela. A minha mãe é de carne e osso e tem um coração. O senhor, para ser padre, negou a carne, e não entende o que é amar alguém acima de tudo, enfrentando barreiras e preconceitos. O senhor deve saber por que é que eu estou aqui, embora eu só possa supor esse porquê. Jamais condenaria a minha mãe a estar na mesma situação que a minha por um erro do tempo, o homem certo na hora errada. Bem fez ela que foi embora daqui, senão seria bem provável que estivéssemos dividindo a mesma cela.Diante da resposta inflamada, o padre preferiu se calar. Não passaria mais sermão nenhum sobre fidelidade, pois sua conversa com a mulher poderia terminar ali. Porém lhe disse:- Muito bem, vamos continuar a nossa conversa sem nos ater a opiniões, pelo menos às minhas, mas há de prometer-me que isso ficará entre nós.Surpresa, ela perguntou:- A quem é que eu poderia dizer algo contra o senhor?A resposta fez com que se lembrasse de onde estava e o que, em breve, aconteceria:- Aos inquisidores, nos interrogatórios.Felipa entristeceu. Escutaram os ferrolhos da porta que se abria e despediram-se na promessa da volta do padre no dia seguinte.
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