quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO XIV


Com a ida dos judeus para Lisboa, os ânimos na cidade estavam mais tranqüilos. Não se esperava que a Inquisição fizesse outra demonstração daquela barbárie, as pessoas estavam mais relaxadas, não sem medo, porém mais calmas, mesmo que a desconfiança ainda fosse uma atitude adotada pelo povo.Felipa tinha engordado um pouco, a primeira vez em que ela e o padre se viram ela mais parecia uma morta viva.O bispo continuava pressionando o padre para que as coisas andassem mais rápidas, e o padre, por outro lado, dizia que a mulher estava conseguindo se soltar agora. Todos num jogo de adiar ou apressar o tempo. Num domingo, para total surpresa de padre Pedro, ele recebeu uma visita: Fulana, mãe de Felipa.A mulher estava vestida distintamente, acompanhada de quem Pedro supunha ser o capitão.Apesar da idade ainda possuía a beleza que imaginara através dos relatos de Felipa, os cabelos presos ainda negros, magra e de baixa estatura. Se pudesse ver Felipa naquela idade, seria muito semelhante àquela mulher.O capitão também era o homem descrito pela prisioneira, só de bater os olhos talvez soubesse quem era, realmente era uma figura sem igual, pelo tamanho e pelo impacto que causava a aparência autoritária. Seus olhos, porém, não demonstravam mais essa autoridade, estavam mais suaves, apesar do estranho olhar.Os dois atravessaram a Igreja e perguntaram por padre Pedro. Chamado pelo um seminarista que atendeu o casal, ele se achegou até eles.- Pois não - disse - em que posso lhes ser útil?O casal perguntou se poderia conversar em particular e esperou a resposta afirmativa do padre. Saíram da Igreja em direção à rua do Comércio, que aos domingos ficava praticamente vazia. Não havia lugar para sentarem. Foi quando o capitão sugeriu que fossem até às pedras perto do mar, onde poderiam se manter afastados e conversar com toda privacidade.Pedro esperava pelas indagações de Fulana com uma certa ansiedade, o que não tardou a acontecer.- Sei que a minha filha está sendo acusada pela Santa Inquisição. Por qual pecado, padre?- Não sei se lhe convém saber, está presa aguardando julgamento.- O senhor tem ido visitá-la, ficamos a saber - afirmou.Surpreso, o padre perguntou-se quem teria contado tal coisa à mãe de Felipa.- Sim senhora, tenho ouvido a sua confissão.- Então é realmente verdade? Ela é culpada?Sem saber o que dizer, preferiu contar a verdade.- Sim, senhora, é verdade, as acusações são verdadeiras.- Quais acusações, padre? Pelo que ouvi não pude acreditar, confirme. O senhor está a dizer que ela confessa, então o que dizem é verdade? Confirmou essa história absurda? - perguntou a mulher, indignada.- Sim, confirmou, está a fazer o seu ato confessional. A senhora gostaria que eu falasse com as autoridades para que pudesse visitá-la?A reação da mãe de Felipa foi totalmente inesperada, ele não estava preparado para o que ouviu.- Padre sinto informá-lo, já não tenho filha nenhuma a partir de hoje. Como pode sugerir-me um absurdo desses? Visitar uma mulher que se enrosca com outras da sua laia! Pecadora, impura, merece a paga pelo erro que cometeu.Totalmente aturdido, Pedro olhou para aquela mulher e disse:- A sua filha ama-a desesperadamente, assim como ao senhor capitão, ela inclusive contou-me a história do vosso amor com aceitação e carinho.- Não me venha com sermões, padre, sou casada legalmente e jamais fiz algo de que me pudesse envergonhar, ou mesmo a ela - dizia em tom exaltado.A vontade de Pedro era esbofetear aquela mulher, mas não parou:- Ela contou-me, inclusive, dos encontros furtivos entre a senhora e o capitão.A mulher, irada, respondeu:- Além de se meter com mulheres como um homem, a maldita é mentirosa!!!- Não admito que fale assim da sua filha, ela não mentiu, ela viu a senhora encontrar-se com o capitão na casa dele em Salvador, ela seguiu-a, descreveu-a como sendo a cena mais linda de amor que já tinha visto. Mesmo que fosse casada!!! - frisou o padre.A fisionomia dos dois mudou completamente, como crianças pegas em uma traquinagem, só que com a culpa vergonhosa nos olhos. O padre prosseguiu:- Desculpe-me a verdade, acredito que Felipa seguiu o seu exemplo, foi isso que ela me disse. Que durante anos a senhora esperou que esse homem voltasse do mar, que só foi embora com ele depois de ela estar casada, não muito tempo depois. Disse também que foi através dos seus olhos que ganhou coragem para assumir, mesmo em confissão, o que sentiu pela mulher que amou. Então, minha cara senhora, se não tem nenhuma filha, lembre-se de que o seu exemplo serviu para alguém. Mesmo que hoje a despreze.Levantou-se das pedras, parou à frente do casal disse:- Esperava muito mais de uma pessoa em quem a filha deposita tão grande amor. E, se me derem licença, tenho horário marcado para falar com ela.Virou-se e foi-se afastando do local.Pediu perdão a Deus, prometeu não comentar a visita da mãe de Felipa com ninguém.Ouviu um fraco gemido:- Espere, por favor.Com a fisionomia dura, ele voltou-se.- Ela disse-lhe tudo isso? Sobre o que aconteceu comigo e Albuquerque?De onde estava, respondeu:- Como é que eu poderia saber disso, minha senhora? Que fonte poderia dar-me essa informação, senão a sua filha?E completou:- Estou atrasado, deseja mais alguma coisa?A mulher, muda, olhava para o marido sem conseguir dizer mais uma palavra sequer. O capitão disse com o tom de voz que Felipa definira tão bem.- Não lhe diga que viemos aqui, somente isto, padre. E, por favor, perdoe-nos.Sem se conter, Pedro retrucou:- É melhor que peçam perdão a Deus pelo que estão a fazer com a sua filha. Passem bem.Deixando os dois nas pedras, dirigiu-se à igreja para buscar o seu material e ir ao encontro de Felipa. Aquele segredo ficaria guardado no peito, jamais contaria a ela o ocorrido.O fato não lhe saía da cabeça, sentia um enorme rancor, precisava orar antes de se encontrar com Felipa, precisava perdoar antes de sentar-se ao lado dela para que pudesse ouvi-la sem demostrar o que estava sentindo naquele momento.Decidiu que o melhor a fazer seria passar o dia em oração e pedir que ela fosse avisada de que estava passando mal, o que não era de todo mentira.Felipa recebeu a notícia com apreensão, nunca tinha ouvido o padre reclamar do quer que fosse. Estranhou, não desejando que isso pudesse passar de apenas um simples mal estar.Pedro orava e ainda tentava entender o que havia acontecido. A raiva que a princípio sentira não estava mais em seu peito. Como ainda ardia o sol, decidiu que resolveria os problemas pendentes de Felipa naquele dia. Francisco -, pensou, iria vê-lo.Saiu de seus aposentos e dirigiu-se à padaria. Ao chegar, reconheceu que o homem trabalhando atrás do balcão era Francisco.Dirigiu-lhe uma pergunta:- Por favor, poderia trocar dois dedos de prosa com o senhor?O homem pára o serviço, olha o padre, pede a bênção e responde afirmativamente.Seguiram para a casa que se localizava ao lado.Ao entrarem, Pedro quase pode sentir a presença de Felipa, tamanha era a arrumação do local.Sentaram-se, e Francisco pergunta ao padre:- Como vai, padre, em que posso servi-lo?- Não é por mim que aqui estou, vim por causa da Felipa, espero que o senhor entenda o motivo da minha visita.- Diga, pois estou a ficar apreensivo.- Tenho conversado muito com a Felipa, isso não é novidade para o senhor. Nas nossas conversas ela demonstra-lhe muito apreço e afeição, e pediu-me que viesse aqui fazer-lhe uma pergunta. Como sou padre, o senhor pode ficar tranqüilo, agiremos como se estivéssemos numa confissão.- Sim, senhor, pode fazer as perguntas que Felipa quer.- Ela pediu-me para lhe perguntar por quê!Como se não entendesse, diz:- O quê? Por quê? Por que o quê, padre?- Por quê, sabendo que o comportamento dela era como era, o senhor agiu como se nada estivesse a acontecer?- Padre, veja bem, sou um homem velho. Quando me casei com a Felipa tinha a cabeça cheia de sonhos, queria filhos tanto quanto ela, mas eles não vieram. Com o tempo já não a procurava como marido, embora soubesse que Felipa apreciava a nossa intimidade e sentia falta disso. Eu sabia padre. O que é que eu podia fazer? Nada. Já não era um homem completo para a Felipa. Vi a amizade dela com Elise como uma distração, acredite, estavam-se divertindo, eu via. No dia em que me contou o que estava a acontecer entre as duas eu já sabia, padre, sentia no ar. O que é que eu podia fazer? Era melhor que a vissem o tempo todo com uma mulher, mesmo que eu soubesse o que havia entre elas, do que fazer papel de corno. Diga-me, quem poderia supor alguma coisa entre as duas? Eram amigas!O padre mal podia crer no que estava ouvindo. Orgulho, o homem ignorou por orgulho!- Sabe que eu até achava engraçadinho as duas a comportarem-se como namoradas?- O senhor percebe que, se tivesse tomado uma atitude, talvez ela não estivesse na situação em que se encontra hoje?- Se eu tivesse feito qualquer coisa, padre, ela arranjaria um homem. Eu não podia prever que o que está a acontecer hoje iria acontecer. Se ela arranjasse outro homem, padre, eu seria corno.- Mas o senhor também está a sofrer com esta situação toda, o falatório, os olhares, até se vai embora daqui.- Eu não estou a sofrer com isso, as pessoas olham-me e dizem “lá vai o coitado do Francisco, coitadinho, foi um bom marido para a outra e olha a paga que recebeu”. Fazem-me vítima, padre, não corno. E vou-me embora daqui não por causa do que a Felipa está a passar, mas porque arranjei uma escrava com quem me amasiei. Apesar de não poder fazer grandes coisas com ela, ela vai-me tratar como eu quero o resto da minha vida, saio daqui e vou para Ilhéus. Achou que eu ia para me esconder pela culpa dela? Não, a rapariga com quem vivo trata-me muito bem. Nada de carta de liberdade, não, esta vai ficar atrelada a mim até ao dia da minha morte. Sinto pelo destino dela, não fui eu que empurrei as duas para a cama.Nem ânimo para qualquer argumentação o padre teve. Achou que por um dia bastava! Não queria mais ouvir nada de ninguém, realmente agora entendia a tamanha solidão que aquela mulher deveria ter sentido ao lado desse homem.Agradeceu por tê-lo recebido, despediu-se e se foi, partindo direto para o único lugar que gostaria de estar agora: seu quarto.

Um comentário:

Unknown disse...

Patrícia por favor entre em contato comigo. Quero muito falar com vc sobre esse texto postado aqui sobre Filipa de souza. Meu e-mail é douglasciello@gmail.com
Saudações
Douglas