quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO IV


Na manhã seguinte mal tinha vontade de abrir os olhos, muito menos de mudar a posição em que passara a noite. Lembrou-se do padre, que nem cara de homem tinha, mais parecia um menino, e um sorriso escapou de seus lábios. Confiava naquele moço, talvez porque sentisse que fosse o filho que Deus nunca lhe dera, com ele as palavras saiam fácil de sua boca.Com certeza era uma pessoa estudada. Pensou no quanto tinha sido difícil convencer a mãe para que a deixasse aprender um pouco das letras. Sabia que era uma mulher de maneiras simples, afinal não fora educada para ser uma dama, era uma mulher como outra qualquer de sua classe social.Altiva, pensou: “... podia ser simples, mas possuía dignidade e foi atrás dos seus sonhos. Infelizmente, no seu coração sabia que o seu próprio sonho a havia colocado ali”.O carcereiro abriu a portinhola da cela e passou-lhe um pedaço de pão e uma caneca d’água. Lembrou-se da viagem mais uma vez, dos dias em que quase nada tinham para comer, mas haviam sobrevivido. Não seria pela falta de comida que lhe tirariam a vida.Percebeu que não estava mais se sentindo como nos últimos dias, a visita do padre lhe fizera bem. Sentiu avolumar em seu peito uma revolta contra aqueles hipócritas todos vestidos com riqueza, achando que podiam fazer o papel de Deus na terra.Tinha que externar sua raiva, pelo motivo que achava que ali estava. Como se achavam no direito julgá-la? Como? Aqueles homens nunca haviam amado!!!Falou todos os palavrões que conhecia em voz alta:“Hipócritas!!! Filhos da puta, cornudos, fodidos, embusteiros, quem lhes deu o direito de saber o que é de Deus e o que não é. Interesseiros, devem ser todos efeminados e nunca devem ter conhecido o amor de uma mulher, ou se o conheceram e a negaram, são tão impuros como os que estão cá comigo. Por que não se jogam por livre e espontânea vontade no fogo??!!!”Depois da gritaria sentiu-se vingada, ninguém podia fazer-lhe mais mal do que já estavam fazendo, podia falar o que quisesse, conhecia seu final, e se quisesse mandá-los à merda de hoje em diante, mandaria! Sabia que quem cruzava a porta daquela prisão não seria inocentado nunca!“Será que o padre iria visitá-la hoje?”.Nada tirava da sua cabeça que ele era o filho mandado por Deus, para que pudesse estar com ele nesses dias que estavam por vir. Não iria dizer nada ao moço, ele com certeza iria pensar que, além do motivo por que estava sendo acusada, devia estar mesmo possuída por algum demônio ou já estava ficando louca.Lembrou-se de Quitéria e começou a divagar, como se estivesse falando com ela:-Engraçado, eu aqui neste lugarzinho, presa como um bicho. Quantas vezes vi negros em pior situação que eu?Lembras-te daquela surra na minha frente? Senti um ódio, o que aquela velha louca pensava, nem tua mãe ela era para te dar tamanho corretivo, só porque não ouviste ela chamar!!! Acho que foi uma das últimas vezes em que brincamos juntas.Aquela mulher, sim, deveria estar aqui para pagar os pecados da forma como a ti tratava e à tua mãe. Bom, se todos os que fizeram isso com os negros estivessem aqui, teriam que construir Salvador de novo, e com um nome diferente. Aqui não se salva um!Uma vez fui com Francisco visitar um cliente que morava num engenho, daqueles enormes. O homem era dono de um monte de terra, a plantação de cana perdia-se de vista, tinha mais de mil escravos, eu bem que dei graças a Deus por tu e a tua mãe não terem ido parar num lugar daqueles.Quase podia ver a moça ao seu lado enquanto falava.- Entramos no tal pátio perto da casa onde o homem morava com a família, toda a gente empoadinha, parecia até que era dia de missa, eu não estava a prestar atenção àquela coisa enorme que era o pátio não, olhava era para a casa. De repente virei-me ao pátio, e o que eu vi embrulhou-me o estômago, cheguei a vomitar, sabias? Tinha um monte de negros amarrados nuns postes sangrando, acorrentados, e um homem da mesma cor deles, negro, menina, que mandava o chicote nas costas dos pobres coitados.Eu fiquei muito assustada, peguei no braço do Francisco e perguntei-lhe o que era aquilo... Tu podes imaginar o que o babão me respondeu?E imitando a voz do marido, continuou.- Isso é o ensinamento que eles ganham quando tentam fugir daqui, afinal o que é que essa negrada quer? Trabalham, ganham comida e casa de graça, deviam era levantar as mãos para o céu e agradecer pelo que recebem.Não me agüentei. Não! Não mesmo!!!Parou e fez uma pergunta para o nada, ou para a mulher que julgava ver a sua frente.- Tu conheceste o meu marido, era bom, mas o homem não entendia nada de mulheres, deves-te lembrar. Voltando onde eu tinha parado, segurei no braço dele e disse: vai lá, fica no lugar deles, e depois diz-me se isso é ensinamento!Tu conheces-me, menina, sabes que não sou de segurar as palavras que me vêm à boca. E olha que o homem olhou feio para mim, mas eu nunca tive medo dele, dei de ombros.E continuou o seu monólogo, como se alguém ouvisse:- Sabes por que eu acho que não consigo esquecer essas coisas que eu vi? Porque eu estou aqui, e sei que quem vai passar por coisa igual ou pior sou eu, já ouvi um monte de histórias da gente que foi presa por esse tal tribunal, eu tenho a certeza que vou estar na mesma situação que aqueles negros estiveram naquele dia.Com medo do futuro queria que o tempo parasse, mesmo que a deixasse presa ali.- Lembro-me quando anunciaram que iriam aplicar um corretivo num negro fujão, famoso, desses que fugiam para ajudar outros a fugir, diziam até que tinha construído uma caverna e escondia outros negros lá dentro, mas que branco nenhum sabia aonde era a bendita. Não me lembro o nome que eles deram a estes esconderijos, eu não sei o que fui lá fazer, nunca me tinha interessado em ver essas coisas, provavelmente estava a comprar alguma coisa no comércio.Mas neste dia eu parei para ver, céus, como aquele negro apanhou, e o povo gritava - isso mesmo, bate mais, que essa raça de miseráveis merece é isso!Credo lembrei-me até da Bíblia. É, da Bíblia!!! Tu lembras-te das histórias daqueles homens que acreditavam em Jesus e eram atirados a um poço cheio de leões para serem comidos vivos? E toda a gente que estava ali torcendo contra o negro cristão!!! Como a memória é fraca quando convém!!!E como chegavam navios trazendo cada vez mais negros para cá!!!Sabes uma coisa, eu nunca entendi, devia ter mais negros do que brancos cá, explica-me aí, tu que és da raça, por que nunca acabaram com os brancos e tomaram conta desta terra, quer dizer, não precisavam matar todos, podia sobrar gente branca que fosse boa, porque tinha... Uns até ajudavam os escravos a fugir, estes não precisavam morrer, mas esta cambada, esta mesma que me colocou aqui, estes deviam morrer todos!!!Impacientava-se. Olhava para a porta, tentava ouvir algum outro barulho que não fosse de gritos desesperados, e nada do padre.Bateu na porta como se pudesse ser ouvida do outro lado e gritou:- Ei, gajo!!! Gajoo!!!!!!! Aonde estas, carcereiro????? - Pensou: “Se eu começar a insultar ele vai aparecer, nem que seja para me dar umas bofetadas e insultar-me mais do que eu o insultei a ele. O melhor é mesmo eu calar a boca! ”Já que o padre não vinha, continuou a falar com a moça da sua imaginação:- Tu eras tão linda, Quitéria, alta, magrinha, tinhas umas pernas bem feitas, os peitos empinadinhos, e a nádegas... que nádegas!!! Eu lembro-me bem porque nós nadávamos nuas naquele ribeirinho perto daquele convento, eu nunca pensei nisto, mas imagina se as freiras nos tivessem visto as duas lá, que surra iríamos levar.Riu de novo, mas na mesma hora os seus olhos tornaram-se tristes, tapou-os com as mãos como que para apagar a imagem que lhe veio à cabeça.Falava desenfreadamente, coisas sem sentido, o que lhe vinha à mente, parecia que estava se afogando em lembranças. O seu humor alternava da apatia à euforia.- Sabias que o Francisco uma vez comprou um negro? É!!!! Foi lá no cais, no mercado onde vendiam o seu povo. Um dia chegou a casa com um deles. Eu quase caí no chão, não entendia o que ele podia querer com um escravo, a escrava lá era eu.Riu mais uma vez.- Quem trabalhava e sabia muito bem fazer o serviço de casa era eu, e nunca reclamei nada, era o serviço da mulher. Quase tive uma zanga com o homem por causa disso, mais aí ele veio com aquela conversa mole de que precisava de mais alguém na padaria, e contratar um branco ia sair muito caro, estas coisas, o negrinho nunca fez nada de mal não, era até muito educadinho.Numa conversa nossa - é, menina, a gente conversava muito quando ninguém estava por perto - ele contou-me que era príncipe lá da terra de onde ele veio. Príncipe!!! Num acreditei nisso não, acho que foi só para me impressionar, tu já pensaste ter um príncipe a trabalhar em casa, mesmo escravo? Se ainda fosse uma daquelas ricaças, mas eu, Felipa, uma costureira? Até que podia ter sido bom para os negócios do Francisco, era só espalhar que o negro era príncipe e servia na padaria, já imaginaste a curiosidade do povo???Explica-me, como é que pode existir um príncipe negro, mulher?Nunca falei nada disto com ninguém, já pensaste o que ririam da minha cara?O dia foi passando e nada do padre aparecer, dirigiu-se novamente para a pesada porta e começou a gritar de novo:- Gajo!!!!! Boçal! Ei, filho de uma puta!!! Ô gajo, onde está o padre???? Gajooo!!!!! Merda!!!!!!! Será este filho de uma puta é surdo?Lembras-te quem me ensinou a dizer insultos? Lembras? Foste tu, acho que de ouvir a velha...E desatou a rir novamente.- Tinha uns que nem repetir eu repito, acho que já nem me lembro, quem sabe se fizer uma forcinha até me vêm à cabeça de novo, mas tu sabes, se começar a falar estas coisas, além do que já sou acusada, vão-me chamar doida.Aquele dia se foi e o padre não veio. Felipa entristeceu-se, gostava do moço. Mas a conversa com Quitéria tinha sido boa.Acabou por adormecer em meio às lembranças da negrinha.

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