quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO XXI


Passaram-se seis meses desde o martírio de Felipa. Pedro sofrera uma grande ameaça da Igreja por desistir do celibato e abandonar o hábito. Em uma época onde pessoas eram perseguidas por qualquer motivo, e esse, com certeza, seria bom e dos grandes. Enfrentou a ira do bispo e de outros membros para que pudesse viver em paz.Foram quase três meses de luta contra o clero, mas no final conseguiu convencê-los de que não estava preparado para assumir um compromisso tão “importante” com a humanidade, que era muito pouco abnegado para que sua vida fosse abençoada por Deus daquela forma, achava que seus erros eram maiores que suas virtudes, e que o clero deveria ser constituídos apenas por homens virtuosos. A vaidade é um pecado que encontra-se em todos os lugares, quanto menos vaidoso alguém se julga, mais é.Pegou a todos pelos próprios erro, mas acabara perdera um tempo, para ele, de extrema importância, de cumprir a promessa feita para Felipa.Pensava nela constantemente, mesmo enquanto estava servindo em Salvador e na Igreja da Fé. Nada soube do seu paradeiro, ela desaparecera, sabia apenas que tinha sido expatriada para Portugal. Havia tentado localizá-la, mas foi inútil. Era como se ela nunca tivesse existido.Após abandonar o hábito e a Igreja, concentrou sua busca em Elise. Sua primeira parada foi na velha casa que ela ainda mantinha em Salvador. Os escravos que lá trabalhavam pouco sabiam à respeito da vida de sua senhora, tinham apenas o endereço de sua casa no Rio de Janeiro. Já era alguma coisa para quem achava que iria procurar agulha em palheiro.Viajou de Salvador para o Rio graças à bondade de amigos feitos enquanto padre, que o apreciavam e compartilhavam do sentimento de injustiça que a Inquisição despertava em seus corações.Ao chegar ao Rio, hospedou-se onde um amigo de Salvador lhe indicara; foi ao o endereço onde morava Alberto Dias, poeta e judeu, que conseguira sair do Nordeste antes de toda perseguição sofrida por seu povo, porém vivia clandestinamente no Rio. Pouquíssimas pessoas sabiam da sua real condição. Mas Pedro nada tinha contra ele, e aceitou a oferta de bom grado.Munido do endereço de Elise, foi até lá. Ao chegar, deparou-se com o mesmo luxo que havia na casa em Salvador. Foi até à porta e bateu forte, prevendo que, se houvesse alguém cuidando da casa, possivelmente só o ouviria se ele batesse alto.Qual foi não foi sua surpresa quando a porta foi aberta, quase de imediato, por uma escrava. Encheu-se de ânimo e perguntou por Elise.A resposta o decepcionou sobremaneira, ela havia estado no Rio há menos de um mês, e que seria bem provável, que a senhora teria voltado para sua terra natal. Mas qual seria essa bendita terra? Informou à escrava que precisava encontrar sua dona com uma certa urgência, mas que não sabia onde era a terra de onde ela veio.A escrava mais uma vez deixou que a decepção invadisse o peito de Pedro, ela também não sabia com certeza onde era a tal terra. Perguntou-lhe então se sabia quando ela voltaria para o Brasil. A escrava disse que não sabia se ela já teria viajado, que tinha quase certeza que não, pois tinha que estar de volta ao Rio em meados de setembro, e achava que a dona tinha ido a Salvador.Pedro se surpreende e pergunta à negrinha:- Como sabes que ela foi a Salvador?A moça, percebendo que tinha sido pega numa enrascada, pede segredo e conta:- Sabe o que é sinhôzinho, eu ouvi uma conversa de que a casa dela lá tava meio que abandonada, e a sinhá disse pro Dotô Henrique que ia tê que passá por lá antes de vortá pra terra dela.Pedro volta a questioná-la:- Então com certeza em pouco mais ou pouco menos três meses ela estará de volta ao Rio?- É sim, sinhô.Ele agradece a ajuda e as informações e volta para a casa onde estava hospedado. Precisaria ficar mais tempo do que o previsto no Rio, não havia pensado para onde iria. Afinal, não saberia mesmo para onde ir, não morava mais em lugar algum, teria que pensar em sua sobrevivência, coisa que a Igreja sempre fez por ele.Uma grande e sincera amizade nasce entre Pedro e Alberto. Cada qual a sua maneira entendia o que era a perseguição da Igreja, e por saberem exatamente o que aquilo significava, tornaram-se amigos.Sua rotina durante dias já estava traçada, sairia em busca de um ofício. Após quase um mês de procura conseguiu um emprego, graças aos conhecimentos adquiridos em sua educação religiosa, que abrangia várias áreas do conhecimento, inclusive matemática, como fiscal de impostos, o que não era comum. Não que entendesse do assunto, mas dominava bem assuntos pertinentes à função, o resto poderia aprender com facilidade.Mesmo tendo conseguido um bom emprego, continuou a morar com seu amigo, dividindo as despesas da casa. Passaram-se os dias, havia se acostumado à nova vida, mais fácil do que imaginara, se bem que ainda estranhava o fato de vestir roupas comuns. Resquícios do hábito!Aproximava-se o dia em que era esperada a volta de Elise, e Pedro passou a sentir-se mais ansioso. Sabia que teria que falar com a mulher que havia sido amante de Felipa, muitas vezes sua moral cristã falava mais alto do que sua própria vontade. Mas o prometido seria cumprido, assim dizia.Assim criou o costume de todas as manhãs, antes de ir para o serviço, caminhar diante da casa de Elise na esperança de ver algum sinal da sua volta. A carta de Felipa não saía de seu bolso, estava pronta para ser entregue, e sua missão seria complicada, explicar o que havia acontecido demandaria coragem e muita força.Até que, certa vez, notou a presença de luzes na casa, podia ver as sombras bruxuleando no tecido da cortina.E agora... ? - pensou. - Bato já à porta ou espero o amanhã?Indeciso, mas temeroso de que ela se fosse antes que pudesse lhe falar, dirigiu-se à casa, bateu o sinete e esperou que alguém abrisse, enquanto sentia um frio estranho na barriga.A mesma negrinha que o atendeu da primeira vez abriu a porta:- O que o sinhô deseja?- Boa noite! Por favor, lembra-te que cá estive há tempos atrás à procura da senhora Elise? Gostaria de saber se ela está, vi luzes quando passava em frente...- Ela está sim sinhô, um momentinho, vou avisá a sinhá, a quem devo anunciá?- Ela não conhece-me, diga apenas que é um amigo de Felipa, de Salvador.A escrava entra, fecha a porta, e o deixa aguardando do lado de fora da casa. Passam-se minutos, para ele parecem horas, até que a porta se abriu novamente.- Sinhá pediu pro sinhô entrá. Me acompanha.Sem pensar e reparar onde estava sendo levado, seguiu a moça, que atravessando um grande hall, e algumas salas, para em frente a porta de um cômodo, que aparentava ser um escritório ou coisa similar. Ele entra e a porta é fechada atrás de si. Meio perdido, não sabendo para onde dirigir o olhar, escuta uma voz suave, com um leve sotaque, imediatamente soube que era Elise quem lhe dirigia a palavra:- Disse à Belinda que é amigo de Felipa, o que o traz até minha casa?O tom frio da recepção foi algo que não esperava daquela mulher. Será que todos aqueles anos em que Felipa lhe dedicou um amor inesquecível receberiam a mesma paga dos que os outros que amou e conviveu? Sua mãe, o Capitão, seu marido, e agora Lise, sua amante?- Perdoa-me a intromissão, mas trago-te uma carta de Felipa e gostaria de sair ao entregá-la. Acho que não ficarei cá esperando que leias como Felipa pediu-me.Elise pega a carta de suas mãos e dirigi-se à porta. Antes, porém, faz uma única pergunta:- Como ela está?A resposta foi seca, Pedro já estava cansado de ver a reação de todas as pessoas em quem Felipa confiou, não queria mais uma vez ver que os sentimentos de Felipa, haviam sido desprezados por todos. Não assistiria o descaso e a falta de amor por aquela mulher que tanto admirou, mais uma vez, não havia nada que o fizesse ficar, não era mais um padre.- Provavelmente morta. Disse secamente, sem emoção alguma, não pela perda de sua confidente, mas pela falta de sentimentos que sentiu por parte daquela mulher.Viu que Elise cambaleou diante dele, amparou-a, e sentou-a em uma poltrona. O olhar da moça era de completo terror.- Não andas-te por Salvador? - perguntou à Elise. Não ouvis-te a boataria sobre o acontecido?- Não sei de nada, mal parei em Salvador, na verdade estava em Recife. Quem é você? - perguntou Elise, sem cerimônia nenhuma.- Fui amigo e confessor de Felipa, enquanto era padre, por favor, leias a carta, estou a sair.- Não!!! Espere! Ela lhe pediu para aguardar enquanto eu lesse, foi o que disse, então, por favor!!!Sentou-se a contragosto onde a mulher lhe indicou e esperou.Com as mãos trêmulas Elise abre o envelope fechado com o lacre da igreja, o único que Pedro pôde usar para que a carta não ficasse exposta.“Querida Lise,Quem dera pudesse ser eu mesma a levar-te esta carta, pois desta maneira, não precisaria de escritos, seria eu mesma a dizer-te tudo que estou a sentir.Toda minha vida nunca pensei que fosse encontrar o amor da maneira que encontrei, foi surpreendente como ele mostrou-me à mim que nem dei-me conta a princípio, que era amor, precisei sentir-te a pele junto à minha, para que meu coração pudesse abandonar-me o corpo e juntar-te ao teu. Agora sinto-me vazia, não ter-te perto foi morrer-me aos poucos. O que restou-me não possuía nenhuma importância que valesse à pena manter-me viva.O que fez-me sobreviver foi a tua lembrança, teu sorriso, teus olhos, tua boca, os caminhos que percorremos nós. E o que há de manter-me forte no que está por vir será esta mesma lembrança.Não preocupe-te com o que foi-me feito de meu destino, aprendi que existem coisas eternas, a mais eterna de todas é o verdadeiro amor.Quantas vezes desejei-me ir ao teu encontro e, fraca, não o fiz... Tola, eu! Sabia que sem tua presença a vida não valeria-me nada, culpei-me amargamente por ter tido pensamentos moralistas, e não ter-me ido contigo, hoje não os tenho mais. Enfrentaria tudo por ti.A intenção de escrever-te não era entristecer-te... Era sim tranqüilizar-te...Queria que sentisses que estarei contigo eternamente. Basta que penses no amor que tivemos.Estou eu aqui a escrever-te tantas coisas e nem imaginando se tu ainda sentes algo por mim, tola...Deixes que eu seja tola, deixes que eu acredite que teu amor é tão imortal quanto ao meu, deixes que eu acredite que nossa vida fundirá-se numa só quando encontrarmos-nos de novo. Deixes que eu creia...Lise, minha Lise eterna e amada Lise...Despeço-me agora, meu tempo é curto, a pessoa à entregar-lhe esta carta, falar-te-a sobre isto.Queria apenas que soubesses que amo te e amarei-te por toda a eternidade. Sei que Deus há de aceitar-nosPerdida estou eu em meus pensamentos e perco-me ao tentar-me coordenar as idéias.Perdoe-me.Amo te, eternamente tua,“Felipa”Dobrou a carta e perguntou a Pedro: - O que houve? Parecia chocada.Pedro lhe contou tudo o que havia acontecido, todo o martírio de Felipa, seu sofrimento, seu amor, sua sentença, descreveu da maneira menos dolorosa possível. Contou de sua tentativa de encontrá-la, e de como foi à sua procura para entregar a carta. Falava como se precisasse jogar para fora, o que o manteve ansioso até aquele momento, quase nem reparando na moça sentada bem próxima a ele.Elise olhava para Pedro como se nada do que ele tivesse dito fizesse sentido.De repente, um grito abafado e um choro compulsivo invade o ambiente. Pedro vê desabar a mulher que se mantinha fria até então. Não sabe que atitude tomar, aproxima-se, coloca a mão em seu ombro, Elise se agarra a ele num gesto desesperado, e assim permanecem...Quando finalmente ela acalma, diz a Pedro:- Saiba que amei Felipa como nunca amei ninguém. Tive durante esses anos imensa vontade de vê-la, mas meu orgulho foi mais forte. Idiota que fui. – Olha diretamente para o homem a sua frente e diz: - Procurou-a por todos os lugares? Tem certeza absoluta que não esqueceu de nenhum local possível? - pergunta, aflita.- Sim, e como ainda era padre tinha contatos em Lisboa, mas ninguém ouviu falar o nome dela.Visivelmente abalada, lhe diz:- Quero lhe agradecer tudo o que fez por Felipa e dizer que continuarei a procurá-la, não desistirei.- Tem certeza que ficarás bem? – Pergunta preocupado com a moça.- Por favor não se preocupe, já fez mais do que deveria. Sei que a acharei.Pedro se despede, deixa o seu endereço para o caso de ser necessário em alguma ajuda e se retira do aposento em direção a porta da casa.Do lado de fora, no paço, olha o céu coberto de estrelas e murmura:- Está feito Felipa, cumpri o prometido, agora é contigo e Deus.Aliviado, segue seu caminho até se perder na escuridão.

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