quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO XVIII

A caminho da igreja, o padre pensava em tudo que havia ouvido. Não podia acreditar que tivesse sido daquela maneira. Ele tinha conhecido Paula muito antes de entrar pela primeira vez na cela de Felipa. Na realidade, quando a viu pela primeira vez, achou que ela era realmente tudo o que falavam dela. Claro que a verdade de suas práticas sexuais era real, mas a maneira como ela foi denunciada não era. Não era aquela mulher ardilosa, cheia de artimanhas para levar as mulheres para sua cama, ele tinha certeza de que não era. Hoje sabia quem Felipa era, mas antes tinha acreditado em Paula.Pobre Felipa, suas cartas, somente suas cartas puderam colocá-la onde estava, pois nada mais havia de concreto contra ela que envolvesse outra pessoa. Será que poderia medir a maldade, será que Deus estaria vendo aquilo? Culpada as duas, o pecado era o mesmo, mas uma havia vestido pele de cordeiro. Meu Deus!! Por que Paula não pagaria pelo que também tinha feito? Mas quem? Quem acreditaria em Felipa, exposta da maneira que Paula a expôs, quem?Ao deitar-se, as perguntas ainda lhe confundiam a cabeça, não conseguia dormir. Restava um dia apenas, um dia para que ela pudesse falar e continuar viva. Um dia.Logo que o dia amanheceu o padre se arrumou e partiu para a prisão. Teriam quase o dia todo, não queria perder nem um minuto sequer.Ao entrar na cela viu o pânico instalado em Felipa, mas ela fazia o possível para parecer tranqüila. Ele via que não era assim, mas deixou que ela agisse da maneira que queria, pois haveria uma hora em que o terror viria à tona.Padre Pedro sentou-se, e depois de cumprimentá-la, perguntou:- Pronta?Ela assentiu com a cabeça, e praticamente vomitava as palavras.- Pois , padre, foi assim que vim parar aqui. Desde o momento em que vi Paula sabia que as coisas não poderiam dar certo, só não esperava este fim.Fui para o Recife, como havia planeado, fiquei com Quitéria duas semanas, pude ter a minha negrinha para mim naqueles dias e vi o quanto estivera doente por Paula. Foram bons dias aqueles que passamos juntas. Quitéria reparou que eu não estava bem, conversamos muito sobre o assunto e ela aconselhou-me a afastar-me de Paula, o que já era minha intenção.Quando voltei para Salvador, Paula não me procurou. De fato estranhei, mas sabia que ela havia ficado irada comigo. Então conformei-me, e retomei à minha vida, aliviada por ela não fazer mais parte dos meus pensamentos.Até que um dia, como de costume, estava a costurar e ouvi fortes batidas na porta de casa. Estranhei as batidas constantes. Abri a porta e, a princípio, não entendi bem. Ali estavam militares, bispos e alguns homens que acompanhavam os urubus. Perguntei o que queriam - olhou para o padre como que a explicar-se - eu realmente não fazia a menor idéia do que estava a acontecer. A multidão foi-se ajuntando na frente da minha casa, Francisco saiu da padaria e correu para lá. Um homem começou a ler um papel e eu não conseguia reter o que ele falava, não tinha sentido. Não sabia o que estava a acontecer, de verdade, padre!!!Fui levada de minha casa direta para este buraco onde estou, nem sei há quanto tempo. Só gostaria de lhe pedir um favor, queria escrever uma carta para que o senhor a entregue nas mãos de Lise, posso?O padre, que lhe havia prometido procurar Elise, consentiu. Ela pediu-lhe algo em que pudesse escrever, sentou-se e começou a rabiscar as palavras em absoluto silêncio.Depois de um tempo perdida no papel que seria o seu reencontro com aquela que nunca deixou de amar, perguntou ao padre se ele tinha um envelope. Ele entregou-lhe um, ela dobrou o papel e, mais uma vez, disse-lhe:- Aqui está, Pedro, quero que entregue em mãos a Lise, queria pedir-lhe que... Sinto-me até sem graça, mas gostaria que selasse e não lesse o que lhe escrevi. Se for do consentimento dela, ela deixará que saiba o que consta nesta carta.O homem apenas sorriu e acalmou-a quanto ao sigilo. E perguntou:- Felipa, estás ciente de que amanhã a levarão daqui para o interrogatório? - Ela meneou a cabeça e ele continuou: - Pois bem, quero que saiba que farei o possível para poder participar, farei o que estiver ao meu alcance. O problema é que sei que o meu alcance, perto desses inquisidores, é muito pequeno. Mas mesmo que eu não esteja aqui estarei orando por si, e o meu pensamento estará voltado para o seu o dia todo. Pedirei a Deus que seja Pai e a auxilie a passar pelo interrogatório sem que sofra. Lembre-se, farei o possível!Ela agradeceu apenas com o olhar e jogou-se em seus braços, as lágrimas descendo pelo seu rosto. Não conseguia se soltar daquele que tinha sido tudo seu naquele mês, e que era seu amigo acima de qualquer outra coisa.Aquela foi uma noite diferente para Felipa. Desde sua prisão evitara pensar conscientemente no que tinha acontecido.Começou a vir à sua memória os acontecimentos daquele fatídico dia. Lembrou-se do dia em que chegou à prisão, a primeira imagem que lhe vinha à cabeça era seu primeiro interrogatório, fosse esse ou não o nome do que haviam feito.Estava em uma sala com o que deveria ser um inquisidor, alguns membros da igreja e outros homens bem trajados, e as perguntas começaram assim:- O teu nome?Ela havia dito.- A tua idade; a qualidade do teu sangue; que ofício exercia; onde vivia; natural de onde; moradora de que localidade; quem eram os teus pais; os teus avós, paternos e maternos; se possuía irmãos; se tinha filhos ou netos vivos ou mortos; se era cristã batizada e crismada; onde se tinham dado os fatos; por quem; quem eram os seus padrinhos; se, com o passar dos anos, ainda ia à Igreja; se ouvia as missas; se costumava confessar-se e comungar; e que obras realizava a mais como cristã.Lembrava-se que, após ter respondido a todas essas perguntas, a mandaram ajoelhar e rezar diversas vezes várias orações.Depois continuavam com outras perguntas:- Se sabia ler e escrever; se tinha estudado alguma ciência e, caso positivo, onde; se tinha saído da colônia; por que lugares andou e, nas terras que esteve, com quem esteve; com que pessoas lidava e se comunicava; se já havia sido presa ou penitenciada pelo Santo Ofício, ou se tinha parentes que o foram.Guardavam suspense para a última pergunta: se sabia ou suspeitava por que havia sido presa.Não fazia a menor idéia do que estava fazendo naquela sala, somente podia pensar que era um engano... e respondeu:- Não, senhor, não sei a razão de estar aqui.O homem não demonstrava muita paciência, e Felipa estava aterrorizada.- Quer dizer que nem tens idéia do que fostes acusada e porque estás presa nesta prisão? Nada lhe vem à cabeça? Não fizeste nada de errado perante a Santa Madre Igreja e os seus mandamentos? Pense bem e lembre-se de que estás aqui porque foi acusada, e com provas verídicas contra a tua conduta como cristã. Os teus pecados são do conhecimento do Santo Ofício, nada está oculto aos olhos de Deus.Ela nada respondia, continuava calada, apenas dizia:- Não é do meu conhecimento esta culpa.A sua cabeça estava atordoada com os últimos acontecimentos e de como viera parar naquele lugar.- Eu gostaria de saber do que estou sendo acusada!O homem a olhava com escárnio:- Sabes bem e não confessas. Não tens consciência de que isso só lhe imputa mais problemas? Confesse a sua culpa, isso lhe será o mais útil neste momento. Quanto mais insistir em se manter calada, pior a sua situação perante este tribunal!!- Confesso que não tenho a menor idéia do que estou sendo acusada...Buscava um motivo, se bem que no fundo estava com muito medo de saber a que culpa aquele homem se referia. Mas quem poderia ter dito algo sem estar implicada também?O tempo arrastava-se, e já se iam horas que estavam no mesmo diálogo insuportável.Finalmente, o inquisidor diz-lhe:- Ficarás aqui por um mês, e durante esse período com certeza se lembrará de quais são as suas culpas perante o Santo Ofício, e verás que a sua estadia aqui não será agradável. Quem sabe isso possa clarear a tua mente.Lembrava-se do momento em que foi colocada na cela, o cheiro ruim que lhe trazia à memória o mesmo fedor da caravela. Chorou dias consecutivos, não podia receber ninguém, estava isolada do mundo, as únicas pessoas que ali entravam eram os carcereiros ou os membros da Igreja.Quanto tempo levou para que realmente entendesse que ninguém poderia tirá-la daquela situação! Quantos dias!...Passado um mês, voltou para a sala em que esteve pela primeira vez em que entrara na prisão. Parecia que dessa vez seria um outro inquisidor, e realmente era, mal se lembrava do nome do primeiro, e lá estava o outro.O homem começou a falar com os presentes na sala e tudo ia sendo anotado. Disse que esta seria a segunda sessão da parte do interrogatório da acusada Felipa de Souza. Ela lembrava-se de ter ouvido algo como “in genere”, mas mal sabia se tinha entendido bem, não entendia aquele língua dos padres e inquisidores.E começaram as perguntas novamente:- Neste tempo em que esteve “alojada” aqui lembrou-se dos seus pecados? Consegues admitir a culpa? Nada na sua alma a acusa? Nada fez??? E tudo se repetiu como da primeira vez... Nada!!! Nada!!! Não havia explicação para aquilo na sua cabeça. Sem poder falar com ninguém, não podia crer que o motivo mais provável para estar ali poderia ser a vingança de uma mulher - que, se contasse algo, também se estaria inculpando. Não era possível, não era provável.Como da outra vez, disseram-lhe que haveria uma próxima sessão, e que dariam tempo para que ela refletisse mais uma vez.Foi nesse tempo que o padre passou a vê-la, e as coisas estavam bem claras para ela agora.Sabia que amanhã seria mais uma vez interrogada, não sabia como não lhe encostaram a mão das outras duas vezes. Sofrera, sim, uma tortura mental. Pareciam gotas de água que não paravam de cair, mas não a tocavam. Agora o medo do que poderia acontecer crescia mais e mais.Apenas algumas horas a separavam do próximo interrogatório, não delataria ninguém, não faria isso. Sabia qual era a sua culpa agora, mas não levaria ninguém com ela. Se pudesse, apenas arrastaria Paula.Restavam minutos para que o dia clareasse, ela sabia disso, podia sentir nos ossos, tamanha a aflição em que se encontrava... Medo, era a única sensação, tudo o que sentia se resumia a uma palavra, medo!!!

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