quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO XVI

Após sair da prisão padre Pedro foi caminhando, imerso em suas reflexões a respeito da conversa com Felipa. Ele realmente sentia no coração que não a condenava, condenava apenas seus pecados, e desses ele sabia que infelizmente ela não teria como se livrar perante o Tribunal da Inquisição. Tinha conhecimento de que, se lhe deram mais tempo, não foi para que houvesse algum benefício em seu favor, mas sim para que denunciasse outras mulheres que tinham a mesma preferência sexual que a dela.O processo contra Felipa estava completo, ela havia sido denunciada, havia provas comprometedoras. Nada a salvaria da punição que a ela seria imputada.Tinha se afeiçoado àquela mulher, mas infelizmente sabia seu fim.Ao cruzar as portas da igreja da Fé, um seminarista veio ao seu encontro com um recado:- Padre, o bispo tem urgência em lhe falar, ele aguarda-o.Pedro sai pensativo e preocupado, pois o bispo não era de mandar recados, e muito menos solicitar a presença de alguém daquela maneira. Ele não costumava esperar por nada nem por ninguém, muito menos por um simples padre.Padre Pedro chega à porta do aposento e bate, aguardando a resposta. Ouve a voz possante do bispo:- Entre de uma vez!Percebe-se que está sem nenhuma paciência.Conforme Pedro ia entrando, o bispo ia falando, de maneira irritada:- Como é, aquela praticante do roçadinho já entregou mais algum nome?Pego de surpresa por aquele vocabulário chulo novamente, o padre Pedro responde:- Não, Eminência, não disse um nome sequer, ela confessa a sua prática, mas não cita nenhum nome.O bispo exaspera-se e dá um soco na mesa:- Como não??? Não pediste tempo, pois acreditavas que ela o faria em poucos dias? O que tens anotado tanto em tanto tempo? Nós não temos mais tempo!!! Recebi uma carta do Frei Bento Dias a marcar para daqui a dois dias o interrogatório dessa infeliz com um dos inquisidores nomeados! O seu tempo acabou, assim como a minha paciência!!!Aturdido com a notícia, Pedro pede, num ato de extrema ousadia:- Dois dias? Por favor, Eminência conceda-me esses dois dias que me restam, quem sabe posso fazer alguma coisa, é tudo o que lhe peço, somente esses dois dias.Sem acreditar na coragem do padre em lhe dirigir a palavra daquela maneira, ele retruca:- Queres mais dois dias? Responda-me, Padre, que queres com aquela doente? Sabes mais do que eu que ela é culpada, por acaso achas que em dois dias ela te entregaria pelo menos um nome?- Não sei, Eminência, não posso afirmar-lhe, só peço que me conceda esses dias para que possa dar fim à confissão que ela começou.- E achas que alguma confissão a livrará da ira de Deus e do seu destino?- Não, Eminência, apenas gostaria de terminar o que comecei. A mim foi confiada uma missão, nada sabia a respeito do prazo, mas em dois dias, com certeza, termino a confissão de Felipa de Souza.- Bem se vê que és novato! Em que isso te pode ajudar a ganhar um lugar mais alto no ministério? Achas, por acaso, que vão contabilizar as horas que passaste a escutar criminosos e dando ouvidos a hereges? Não abuses da minha paciência!- Eu rogo-lhe por esses dois dias, nada mais lhe pedirei quanto a este assunto.O bispo não responde, abre uma gaveta e dela retira uma carta:- Vê, aqui está! Dois dias... dois dias! Não me peças nem mais um minuto, já sabes de antemão a resposta. Agora, sai daqui.O contentamento do padre é aparente, e ele sai do aposento agradecendo:- Obrigado, Eminência, que Deus o abençoe... que Deus o abençoe!!Apesar de se sentir apreensivo, sabia que poderia contar com mais dois dias. Precisava contar a Felipa, Deus!!! Pensou no seu interrogatório com o inquisidor, sabia como as coisas aconteciam, só não sabia se ela suportaria. Conhecia os métodos usados e isso não era segredo para ninguém, afinal toda a orientação estava escrita no Manual do Inquisidor, e quantas vezes ele próprio não o havia lido!Lembrava-se, palavra por palavra, do que estava escrito sobre o interrogatório. Poderia até dizer de cor, e repetiu, provavelmente para si mesmo e antecipando o que Felipa sofreria:“O réu indiciado que não confessar durante o interrogatório, ou que não confessar, apesar da evidência dos fatos e de depoimentos idôneos; a pessoa sobre a qual não pesarem indícios suficientemente claros para que se possa exigir a abjuração, mas que vacila nas respostas, deve ir para a tortura. Igualmente, a pessoa contra quem houver indícios suficientes para se exigir a abjuração.”O veredicto da tortura é assim:“Nós, inquisidor tal e tal..., considerando o processo que instauramos contra ti, considerando que vacilas nas respostas e que há contra ti indícios suficientes para levar-te à tortura; para que a verdade saia da tua própria boca e para que não ofendas muito os ouvidos dos juizes, declaramos, julgamos e decidimos que tal dia, a tal hora, será levado à tortura.”Finalmente, quando se pode dizer que alguém foi “suficientemente torturado”? Quando parecer aos juizes e especialistas que o réu passou, sem confessar, por torturas de uma gravidade comparável à gravidade dos indícios. Entenderão, portanto, que expiou suficientemente os indícios através da tortura (ut ergo intelligatur quando per torturam indicia sint purgata).Como o réu confirma a confissão efetuada sob tortura? O escrivão pergunta-lhe depois da tortura: “Lembras-te do que confessaste ontem ou anteontem sob tortura? Então, repete tudo agora com total liberdade”. E registra a resposta. Se o réu não confirmar é porque não se lembrou, e então é novamente submetido à tortura.Como não antever o sofrimento que estava por vir, mas nada lhe diria sobre isso, apenas falaria a respeito dos dias que lhe restavam...

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