quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO X

Os dias iam passando e a agonia de Felipa crescia. Sabia que as coisas não iriam continuar como estavam, fazia meses que estava presa, nada acontecia, os interrogatórios não aconteciam, podia sentir uma apreensão no ar, o medo aumentava a cada minuto que corria, não sabia a intenção que aqueles “abutres” tinham com relação à sua vida. Seu pressentimento não era bom, isso tinha certeza, já ouvira as histórias da Inquisição, as mortes na fogueira, as torturas. Por que com ela as coisas não aconteciam de uma vez? A angústia da espera era pior do que o fim.“Sei o que querem de mim, isso já tinha sido deixado claro na visita que recebera do bispo. Delação!!!"Isso jamais faria se entregasse alguém sua pena poderia ser abrandada, mas não sabia qual seria sua pena. Se ao menos eles jogassem aberto e dissessem de uma vez o que aconteceria seria mais fácil.Dormira com ódio de Paula, talvez valesse a pena entregá-la, ou quem sabe implicá-la em seu caso.Não! Não era essa sua índole. Jamais colocaria a culpa em alguém por ser quem era, ninguém deveria pagar pela opção de amar uma mulher.“Aumentam os meus medos, sonhos que viraram pesadelos, sinto que a cada minuto o terror se apossa da minh’alma, os dias passam, os pesadelos não tem hora, são contínuos, não preciso mais de cerrar os meus olhos. O meu choro já não é de lamento, mas parte do meu corpo. Afluem lágrimas que se eu bem quisesse poderia bebê-las e matar parte da minha sede.Mas sede de quê? Que tipo de sede as lágrimas saciariam?Tempo!!! Espaço invisível que agoniza os meus dias.Tudo o que se passa neste momento é tudo o meu passado e nada o meu presente.Perco-me na pessoa que sou, não me encontro naquela que fui.Não mais possuo desejos, nem carnais nem espirituais, o que ainda mantém a minha mente sã é saber que vou expurgar o meu passado através do meu desabafo, e com isso espero encontrar o mínimo de paz para o que me aguarda”.Felipa espera seu encontro com padre Pedro, ansiosa para falar tudo de uma vez, tirar e o fardo pesado e muito maior do que poderia suportar.Mais uma vez ouve a porta se abrindo, a figura do padre demonstra uma preocupação aparente demais.Em sua ansiedade, Felipa o questiona:- O que aconteceu? Por que estás assim como quem viu o próprio inferno?Não sabia o que dizer, a resposta estava travada em sua garganta. Contaria a ela? Poderia suportar o que ela pensaria dele? Como não falar se ela havia sido tão honesta, não usando de subterfúgio algum para se expor como fez?- Problemas, Felipa – poucas vezes a chamara assim.- Diga padre, sei que nada posso fazer, quem sabe se, como eu, sentes necessidade de apenas falar.- Gostaria que fosse tão simples. Gostaria muito.- Nada é simples, veja a minha situação, pensas por acaso que está sendo simples expor a minha vida, assumindo ser julgada e sofrer o preconceito até da tua parte? Não!!! Nada é tão simples.Pedro pensava se talvez não fosse melhor falar como ela, abertamente, sobre o que estava acontecendo.- Ontem fui muito pressionado pelo Bispo - calou-se à espera da reação da Felipa.Ela dá um meio sorriso, como se já tivesse previsto, e responde:- Pedro – pela primeira vez tratando-o como um homem, que passava pela angústia de ser colocado sob pressão – realmente pensavas que isso não iria acontecer? Desde que cá estou esta é a única coisa que me mantém viva por aqueles hipócritas. Esperam que eu denuncie pessoas, que entregue os nomes das minhas “amantes”. Espanta-me terem esperado tanto tempo para que o pressionarem.A resposta de Felipa surpreende padre Pedro, que a olha com se a visse pela primeira vez.- Por que razão, se sabias de tudo isso, abriu-te comigo, falou do teu passado como se pudesse confiar que eu não me mancomunaria com os Bispos e os inquisidores?- Sinceramente, não sei, apenas confiei no meu julgamento, se o que falei me pudesse incriminar mais do que já fui, talvez poderia estar preocupada. Nada do que disse já não foi dito, claro que nada a respeito da minha família, mas eles nada têm com a minha prisão.A confusão saltava-lhe aos olhos, a expressão de Pedro era de uma perplexa felicidade.- E agora, Felipa, que queres que eu faça?- Nada, vou-lhe dizer tudo o que tenho para falar, apenas omitirei sobrenomes, dessa forma farei do senhor o meu confessor, e poderás entregar tudo o que eu disser nas mãos imundas daqueles que só procuram limpar-se através dos erros alheios, que nada tem com o que Deus quer, mas sim com o que o Papa, e seus “coroinhas” o fazem querer. Gostaria que a partir de hoje o senhor tomasse notas do que irei dizer, não ficarás em maus lençóis perante o Bispo e a sua corja. Peça ao carcereiro, ele deve ter algo que possas usar para fazer anotações.Indo até a pequena janela, o padre chama o homem e pede o que necessita.- Não quero que te sintas forçada a cooperar em nada, a tua vida já não tem sido fácil.- Faria isso apenas pelo senhor, padre, sinto que me afeiçoei a si. Talvez veja no senhor a figura do filho que não tive, espero que me entenda e perdoe.Não se chocou, mas surpreendeu-se mais uma vez com a espontaneidade daquela mulher. Com o material necessário nas mãos, perguntou-lhe:- Tens a certeza de que é isso mesmo que queres? Não te perturbará falar?- Não!!! Sinto-me agora muito mais segura para contar a verdadeira história, e não apenas a história que me expôs como uma aberração, não tenho mais nada a esconder, o que resta-me agora é confessar. Dizer quem sou, e por que sou como sou.- Muito bem, estou pronto para quando quiseres começar a falar.- Hum... Deixe-me lembrar onde parei, a minha relação com Lise. Hoje assumo, padre, que não foi um delírio ou uma simples experiência, foi realmente amor e escolha. Após ter-me aberto com o meu marido, parece que ficamos mais íntimas, tudo o que podíamos fazer fazíamos juntas. Muitas vezes, creia o senhor ou não, Francisco estava presente, claro que não falava muito, mas sei que ele simpatizava com ela. Cheguei a pensar, em muitas ocasiões, se não estaria satisfeito em ver o meu amor por Lise. Depois aquilo desaparecia da minha cabeça, preferia não pensar. Muitas noites passei naquela casa, afinal foram dois anos de um amor intenso, apaixonado, embriagante, éramos mais do que amantes, e sabíamos disso. Fomos companheiras, irmãs, amigas, confidentes, havia uma completa união entre nossas almas e corpos. Mas não penses que eu não sentia-me mal, sabia muito bem que era errado. Mas qual erro não compensaria o amor e a alegria que nunca tive na vida? Muita gente estranhava o nosso comportamento, nunca nos tocamos em público, mas agíamos como adolescentes. Eu acho que nunca deve ter passado pela cabeça dos moradores de Salvador que existia o que uma relação como a que vivíamos, tamanho o moralismo que existe contra as mulheres. Bem sabes o senhor que não podemos fazer absolutamente nada, e uma mulher andando com outra não geraria muito falatório.Quatro anos e ainda não a esqueci. Penso nela quase todos os dias da minha vida. Lembro-me muito da minha mãe, que durante anos se amou o capitão à espera da sua volta. Esta esperança já não tenho, sei que nunca mais poderei vê-la. Que o tempo não permitirá. O que me estão a dar de sobra aqui, jamais poderia proporcionar-me um minuto apenas de felicidade ao lado da mulher que amei. Acho que me conformei com essa idéia, quem sabe o mundo de Deus seja diferente e aceite os que amem realmente a ponto de dar a vida por amor.O padre achou melhor se calar e omitir em seus apontamentos o que ela havia dito, senão provavelmente seria queimada na fogueira em poucos dias.- Não seria capaz de dizer-te em pouco tempo tudo o que aquele anjo significou para mim, era um amor tão puro, sei que não pensas assim, nem o mundo, mas era. Nunca houve entre nós nada que não fosse por amor. Lise viajava muito, tinha que tomar conta dos negócios. Eu sentia uma saudade que chegava a doer. Correspondíamo-nos se por acaso ela ficasse muito tempo longe, mas isso aconteceu poucas vezes. Infelizmente, sabia que isto era parte da vida que ela tinha que conduzir.- Nestes dias colocava o meu trabalho em dia, produzia como nunca, o interessante é que a minha costura ficou mais aprimorada, a minha sensibilidade feminina aumentava a cada dia, as minhas clientes até elogiavam o que eu mesma criava. Engraçado, eu sentia-me muito mais mulher, consciente do meu corpo e do corpo das outras mulheres. Parecia que algo novo se tinha acendido para a minha condição de fêmea. Até Francisco me elogiava, nunca entendi aquele homem. Diga-me se era normal? Por favor, não coloque isso aí, tenho medo que possam ir atrás dele. Não quero que o persigam por minha causa, já chega o que eu causei à vida dele.O padre ia anotando tudo, dando as devidas ressalvas que Felipa lhe pedia.Ela pára de falar e pede a Pedro:- Por favor, peço-te que só entregues isto depois de eu terminar de contar tudo o que preciso, será possível?Em resposta o padre pára e pensa: tenho que lhes dizer alguma coisa a eles, pensarei em algo, não posso omitir por completo, mas...- Posso dizer-lhes que está muito debilitada, fala devagar e muito pouco, o que acha?- Esta parte eu não entendo, o melhor é que saia da cabeça de quem saiba como os “abutres” pensam... - e sorriu.Pedro pára, respira fundo, olha diretamente para o rosto de Felipa e despeja de uma vez, sem rodeios:- Preciso dizer-lhe algo – disse em tom tão sério que a mulher se assustou.- Quando começou a contar-me sobre a Elise, não queria acreditar, você há de compreender que cresci num seminário, que qualquer coisa que não consta nas escrituras me é estranho, muitas vezes chocante. No primeiro dia, queria que não estivesse me dizendo a verdade, não podia acreditar que no meio de tanta meiguice... – calou-se pensando na melhor maneira de falar sem a ofender – pudesse ter acontecido realmente o que consta na denúncia. É... sou um homem de pouco conhecimento da vida, mas muito das palavras. Amor para mim sempre foi o que dediquei a Deus, e esse é inigualável, peço que me entendas, orei muito, pedi ao Pai que me fizesse entender, que pudesse ter a capacidade de a não julgar. Entendi minha filha, que o amor de Deus é assim, ama-se o errado, porque o certo, aos seus próprios olhos, não necessita de ser amado. Hoje posso sentar-me aqui e ouvi-la sem que me choque ou que a julgue, pensei muito em Cristo, o quanto perdoou, andou e viveu entre pecadores. Sabes que pecou, disto tenho certeza porque me disse que sabia não ser correto, mas diga-me, quem nunca pecou? Existe um tamanho para o pecado, ou comparação, não é mais pecador aquele que mata sem razão alguma do que aquele que ama, mesmo que fora dos propósitos divinos? Peço-te que me perdoe, se estou aqui hoje consigo é porque amo a si como Cristo amou os homens, sem se importar com os teus erros.Felipa sentiu uma grande ternura e afeição por aquele homem, mesmo sabendo que a visão dele não se parecia com a sua, entendendo o esforço que ele fez para aceitá-la como ela era. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, dessa vez não eram de tristeza, mas de amor, um amor fraternal que jamais havia sentido desde que a sua vida foi exposta ao público.Sem malícia ou pudor abraçou o padre Pedro com todas as suas forças e disse apenas:- Obrigada!Na porta, o barulho dos ferrolhos se fazia ouvir. Eles se separam rapidamente, com a promessa do novo dia.

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