quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO VI

O sol castigava Salvador, o calor estava cada vez mais insuportável, as pessoas nas ruas andavam de um lado para outro em seus afazeres diários suando sem distinção de classe social, pois o que iguala os homens na terra são as reações do corpo à natureza que Deus nos deu.Navios negreiros haviam desembarcado naquele dia, a comercialização estava prestes a começar, pessoas vinham de vários cantos do Brasil para o leilão dos escravos, ninguém tinha previsão de quantos dias poderia durar.Felipa ouvia a gritaria dos mercadores, mas já tinha se acostumado com aquilo, era parte da vida de quem morava ali.O porto era local de desembarque dos negros, e hoje Felipa conseguia entender o horror de um ser humano ser vendido ou tratado como bicho, era anormal, doente, e tudo por dinheiro. “O que move essa terra é isso, dinheiro e religião!” - pensou.Tentou comparar a sua situação com a deles.Concluiu que a sua era bem melhor. Tinha passado a sua vida livre e sem preconceitos. Somente hoje, depois do que soubera através do bispo, entendia o que era perseguição, o que era preconceito. Poderia dizer que a similaridade entre os negros e ela estava no fim da jornada. Ambos sabiam que poderiam acabar com a morte, eles por buscarem a vida livre, ela por ter vivido livre.Nada mais do que acontecia na cidade lhe interessava. Não compreendia por que a haviam colocado naquela situação, mas procurava entender, mesmo que nada entendesse.Como de costume recebeu do carcereiro o seu alimento diário, pão e água, olhou mais uma vez com desgosto, estava com fome, não era exatamente o que queria comer. Mas o que podia fazer, era essa a sua paga.Imaginou se o padre apareceria, afinal tinha mandado o homem embora no dia anterior. Sentiu raiva de si mesma, gostava da presença daquele jovem ali. Tinha-o como alguém a quem podia contar a sua vida, não sabia se toda ela, sentia que nas suas conversas estava passando sua vida a limpo, nada tinha que a envergonhasse, não se arrependia de nada mais agora.Paula veio-lhe à cabeça, não poderia acreditar que ela tinha cumprido o que prometera. Seria por medo? Mas quem, além delas duas, sabia?Ouviu passos fora da cela e se recompôs, e o carcereiro berrou que o padre estava lá para vê-la.Gritou Felipa, para que pudesse ouvi-la:- Abra a porta!!!O padre entrou com uma expressão sem graça no rosto, constrangido pela atitude da mulher no dia anterior. Carregava nos braços uma cesta com pães de vários tipos, frutas e um pequeno bolo.- Pediram-me que lhe entregasse isto.Os olhos de Felipa fixaram os do padre de forma indagadora e, surpresa, imaginava quem poderia ter-se lembrado dela a ponto de se preocupar com o seu estado físico.Sem saber o que dizer, perguntou:- Quem mandou me isto, padre?O padre, de olhos baixos, respondeu:- O teu marido.Lágrimas pesadas escorreram pela face de Felipa. Apenas brotavam de seus olhos e deslizavam por seu rosto.- O senhor encontrou-o, padre? Como está ele? O que estão a fazer com ele lá fora? Ele perguntou por mim? Conte-me, padre – suplicava.O padre sentou-se na cadeira pesada.- Estive com ele, sim, minha filha, não por ter pedido, mas por me sentir na obrigação de fazê-lo. Sei do carinho que sente por ele, não podia deixar de saber como ele estava. Fique tranqüila, está tocando a vida, decidiu sair de Salvador, parte em poucos meses, só está a acabar de resolver os problemas da venda da padaria, da casa, estas coisas.O choque de Felipa foi tamanho que ficou sem fala - “Ele vai embora, ó meu Deus, o que eu fiz a esse homem que tem um coração como poucos?” A culpa invadia-lhe a alma, olhou a cesta e nada disse, mas o padre continuou:- Ele pediu-me que lhe entregasse esta cesta, disse que aí tem coisas de que você gosta que deveria estar com saudades de comer. Tiveram que revistar, quase não me deixavam entrar, não é permitido, pedi com muita insistência, acho que os carcereiros já estão a simpatizar comigo, deixaram que eu lha entregasse.Ainda com as lágrimas escorrendo na face como se fosse uma reação natural do corpo, olha o padre como que pedindo perdão e diz:- O que eu fiz a este homem padre... Ele não merecia isto, se a culpa que sinto agora pudesse tirar-me a vida, sentir-me-ia eternamente grata a Deus... O que eu fiz com a vida dele... Por quê??? - a dúvida com relação à Paula lhe veio novamente à cabeça - por que me fizeste passar pelo que estou passar? – mas as suas palavras já não eram dirigidas a Francisco.- Minha filha, ele é um bom homem, apenas deve estar magoado com tudo isso, não é culpa dele – disse o padre, sem entender as últimas palavras de Felipa.- Eu sei que a culpa não é dele, eu sei... sei bem disto... Não era a ele que eu me estava referindo... o senhor entendeu mal.Parada, lembrou que pouco tempo atrás reclamava do que iria comer, de sua fome, agora não sentia fome alguma, apenas olhava para a cesta e sentia o líquido quente verte-lhe na face.Achando melhor que ela pudesse ficar em paz, o padre se dirige à porta, mas Felipa pede que ele fique, queria muito e precisava falar.Ele volta, senta-se novamente, prepara-se para ouvi-la.- Padre, não sei se o senhor vai querer ouvir o que tenho para contar, mesmo porque agora sei porque estou aqui, pois o bispo veio até mim e contou-me. Sei que estou aqui pela minha forma de amar, e sei que se lhe contar talvez não queira mais voltar aqui e vir-me-me, mas não quero e nem posso mentir ao senhor. Chega, preciso desabafar e sentir que posso confiar em alguém, e confio no senhor. Gostaria de saber se está disposto a ouvir.O padre não esperava pelas palavras de Felipa e viu-se diante de uma situação perturbadora. Queria ouvir sua confissão, óbvio que sim, mas se afeiçoara àquela mulher, não sabia se teria condições para ouvir o que já sabia, a verdade lhe seria muito dura, não queria julgá-la, mas como não fazê-lo?Pensa por um tempo e lhe responde:- Sei que, assim como para você será penoso falar, para mim será penoso ouvir, mas estou aqui desde o primeiro dia, disposto a escutar de ti tudo aquilo que te pesa no coração, então que assim seja.Aliviada com a resposta do padre, começa a contar aquilo que jamais havia contado a alguém:- Já disse ao senhor que não amava Francisco como marido, mas sempre aceitei a minha condição de esposa e cumpri todos os votos matrimoniais. Fui uma boa esposa por anos, padre, não queria mudar isso, não. Eu sofria muito por não ter um filho e sabia que não já teria, pouco nos tocávamos fisicamente, o senhor entende o que estou a dizer, padre? Eu sentia-me sozinha, muito sozinha, sentia que era uma meia mulher, afinal fui criada para isto, casar e ser mãe, coisas que acontecem na vida de toda a mulher. Mas o destino preparou-me uma peça, uma peça que eu nem imaginava existir.E continuando a falar, sentiu o tom de confissão.- Eu costurava para muitas mulheres de Salvador, até de outros lugares. Uma tarde eu estava no quartinho de costura a me ocupar do meu trabalho, precisava fazer muitas entregas antes do final da semana. Bateram na porta, o que não era o normal. As minhas clientes iam entrando, sabiam que eu ia estar lá. Estranhando a batida, larguei o que fazia e abri a porta. Lá fora, parada, estava uma mulher muito bonita, dava para ver que tinha posses. Perguntou-me o nome e eu respondi, disse para a mulher entrar, ela passou por mim cheirando a perfume caro, acho que nunca tinha sentido um cheiro tão bom, o senhor sabe que banho não é coisa para todos os dias, mas eu tinha a certeza de que o daquela mulher tinha sido naquele dia.Buscou na lembrança o cheiro, pode senti-lo quase presente naquele lugar imundo.- Fiquei surpresa, claro, eu costurava bem, mas as roupas daquela mulher não eram confeccionadas aqui, não. Aquilo tinha cara de roupa vinda da Europa. Pensava comigo mesma, “o que será que essa dona está a fazer aqui?”, nem podia imaginar, pedi a ela para sentar-se - o meu quartinho era bem arrumadinho, cadeiras, mesinha, parecia bem chique para as mulheres daqui. Ela passou por mim e sentou-se na primeira poltrona que viu. Cada vez eu intrigava-me mais, aquilo era muito estranho para mim. Virei-me para a dona e disse-lhe, educadamente - já disse que educação eu recebi, e boa - em que eu posso servi-la?A feição de Felipa demonstrava que não queria esquecer nenhum detalhe.Ela respondeu-me num tom muito empoado – Soube que você é ótima costureira – eu enchi-me de orgulho, ajeitei-me na cadeira para responder - é o que dizem – e lá veio ela com outra pergunta.- Será que estaria à sua altura fazer uns vestidinhos mais frescos para mim? Os que trago da Europa são quentes demais para o calor de Salvador.Fiquei muito irritada quando chamou às minhas roupas de vestidinhos, não me ia enfezar com a mulher, quem é que ela pensava que era para ir entrando e falando daquela maneira do meu trabalho? Eu só respondi:- Pois não, madame, é só dizer o que deseja, estou aqui para servi-la.Lembrou-se de como a sua vida tinha mudado, e em como tinha sido feliz, não iria arrepender-se pelo que houve!!!A mulher não tinha tecido nenhum nas mãos, perguntei-lhe o que queria que eu fizesse, a mulher olhou-me e disse:- Muitas coisas, a começar por um vestido simples para que eu possa saber se és tão boa quanto dizem.Padre, eu não sou de ficar brava nem de ter raiva dos outros, mas aquela mulher estava-me a deixar irritada.Respondi - às ordens. A madame vai trazer-me o tecido, já tens a metragem, ou prefere que eu meça antes?Ela respondeu:- Prefiro que tire as medidas antes para que eu possa saber o que trazer.- Pois não, respondi, fui pegar na fita de medidas, pedi-lhe para se levantar e lá veio outra pergunta:- Costumas trabalhar sozinha? – se bem que não entendi na hora o que ela quis dizer.- Trabalho sozinha sim senhora!!! - e lá veio mais uma:- Não tem nenhuma assistente?Olhando para ela, eu disse:- Para dizer-lhe a verdade, nem sabia que costureira precisava de assistente.Eu nem havia reparado na mulher, padre, mas na hora em que ela ficou em pé eu vi que estava na frente de uma mulher diferente, parecia não precisar de nada nem de ninguém, não agia feito um homem, mas olhava igual a um. Intimidei-me muito, fiquei parada a olhar para ela, mais alta que eu não muita coisa. Os cabelos vermelhos, lindos, cheios de cachos presos em cima, caíam atrás como uma cascata. Tinha os olhos azuis, um azul da cor do céu, padre, a pele parecia um pêssego, daqueles que de tão caros não dava para comprar sempre. Tinha o corpo arredondado, não era gorda, gorda não!!! Era bem feita de corpo, cheia de curvas.O padre estava ficando numa situação desconfortável, preferiu ouvir como em uma confissão, depois entregaria nas mãos de Deus, e aí seu serviço estaria feito, o resto era com Ele.Continuou a narrativa:- Muito educada perguntei o nome da madame, ela respondeu-me Elise, junto com um sobrenome difícil de repetir. Pedi à madame que ficasse de pé para que pudesse tirar-lhe as medidas, ela levantou-se e eu fui com a fita. Estava eu mais que acostumada a fazer isso, é parte do meu trabalho, mas a mulher deixava-me sem graça. Eu estava a tremer, padre, a tremer ao fazer uma coisa que tinha feito à vida inteira. O senhor sabe como é que se tiram as medidas, padre?O padre, mais que depressa, negou com a cabeça.- A mulher tem que tirar a roupa de cima, porque pode atrapalhar, pede-se para tirar o vestido e ficar com as bragas e a anágua, a madame estava de espartilho, coisa que não via muito nas mulheres daqui, incomoda, num dá para respirar bem, mas faz os seios saltarem para fora, realmente não era comum ver isto em Salvador. Sem vergonha nenhuma, ela tirou o vestido. Há mulheres que para fazer isto é um tormento, tamanha não sentem-se bem. A madame Elise não tinha vergonha não, tirava a roupa, naturalmente, o senhor entende. Até eu, acostumada com isto, fiquei um bocado sem graça. Continuando, peguei na fita e fui medir o busto, depois a cintura, os quadris, as pernas nem precisava muito, mas tirava-se assim mesmo, a altura que ia do ombro até a cintura, da cintura até os quadris, da cintura até ao comprimento, por fim do corpo todo.O padre ouvia tudo, mas este universo feminino era totalmente desconhecido para ele, algumas palavras ficaram sem explicação, não sabia o que significavam. Mas estava atento ao que Felipa discorria.- Sabes, padre, eu toda vida vi mulher como mulher, estava acostumada a ver assim, afinal em anos de costura, vendo mulher de anágua o tempo todo, nunca impressionei-me com nada disso, acho que a princípio nem com Elise, mas ela tinha personalidade, sabia o que queria, e fazia qualquer coisa para conseguir. E posso dizer-te ao senhor que conseguia. Nessa terra bem sabes que não existe tecido bom para fazer um vestido, muito algodão, chita, tem até seda, mas só para quem pode pagar. Acabada de tirar as medidas, disse quantos metros de tecido eu iria precisar, pois já havia me mostrado o traje que ela queria, e ela respondeu-me que traria no outro dia.Parou, tomou um pouco d’água da caneca para molhar a garganta e continuou.- Depois que ela saiu eu corri para padaria e contei tudo ao Francisco, ele disse-me que eu podia ganhar mais dinheiro costurando para essas madames finas, pois eu tentei dizer que ela era diferente, acho que ele não entendeu, na verdade nem eu entendia. Ela era fascinante. E olhe que naquela época eu estava satisfeita com a vida que eu tinha com o meu marido. Mas a vida engana a gente, e como engana!!!Pegou uma fruta de dentro da cesta e passou a degustá-la como se fosse pela primeira vez, parecia uma criança, observou o padre. Conforme ia comendo, ia falando.- Ela voltou no dia seguinte trazendo um tecido muito bonito, de uma cor que combinava com a pele dela, era clarinha, não tão branca como eu. Naquele dia ela passou a falar-me de um jeito diferente, havia alguma coisa na voz dela que parecia tirar-me do chão, e eu não estava entendo nada, padre, nada mesmo!!! Entregou-me o tecido e não se ia embora, começou a conversar sobre a minha vida, a perguntar se eu tinha um bom marido, eu disse que sim, jamais iria dizer que não, perguntou-me em tom muito sério se eu realmente era feliz, eu pensei “por que será que ela me está a perguntar isso?” Respondi que, como em todo casamento, tínhamos os nossos altos e baixos, nada que me fizesse ter alguma mágoa dele guardada no coração.Felipa jogou o caroço da fruta num canto, baixou a voz como que envergonhada e disse.- Perguntou-me quantos filhos eu tinha, e isto entristeceu-me terrivelmente, porque tive que responder que não podia ter os meus próprios filhos. Eu acho, acho não, tenho a certeza, que foi nesta altura que ela olhou dentro da minh’alma, e viu o quanto carente eu estava, sentindo-me sozinha, ela chegou-se perto de mim e abraçou-me, sei lá porquê eu agarrei-me a ela como se fosse minha mãe e chorei, ela acarinhava os meus cabelos e eu chorava como uma menina. Apeguei-me a Elise daquele momento em diante, talvez como a uma irmã que nunca tive. Nunca imaginei... Nunca...O susto dos dois quando o guarda abriu a porta lembrou-os de onde estavam e sobre o que estavam falando.O padre se levantou e disse.- É melhor que tires o que está na cesta, tenho que levá-la comigo, amanhã continuaremos a conversar. Deus te abençoe, minha filha.Felipa tirava os alimentos rapidamente, arrumando-os num lugar onde nenhum inseto ou rato pudesse pegá-los antes que ela visse. Só se deu conta de que o padre tinha ido embora quando acabou de arrumá-los.

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