quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO XII

A cidade estava em polvorosa, via-se uma movimentação anormal da população. Da prisão saiam em fila pelo menos 30 judeus que retornariam a Portugal para serem julgados.Ao verem o estado em que se encontravam, muitas pessoas do povo comentavam em voz baixa que jamais chegariam nem ao cais, pois os corpos sangravam, mostrando a tortura a quem quisesse ver.Era uma procissão horripilante, aquelas pessoas acorrentadas pelos calcanhares, andavam em ritmo lento, pois não conseguiriam manter uma marcha mais rápida.Alguns, inconformados, exclamavam:- Parece o martírio de Cristo, olhem essas marcas! – e apontavam para as feridas abertas nos corpos fragilizados.Como um cortejo fúnebre, os habitantes viam pela primeira vez o horror que estava em poder da Santa Inquisição, mas calados foram-se dispersando...Pedro, que saía da igreja em direção à prisão, calou-se diante da cena, anteviu o que estaria prestes a acontecer com Felipa, seu coração se encheu de fúria, não podia acreditar em tamanha brutalidade.Ao entrar na cela viu Felipa aterrorizada, olhou-a consternado, via seus olhos congestionados pelo pavor, agachou-se e aninhou-a em seus braços.- Que houve filha? - perguntou-lhe, aflito.- Gritos, padre, a noite toda, gritos de dor, de medo, de morte... gritos!!!- Acalme-te, acalme-te!- Que aconteceu cá? O senhor precisa de me dizer, que aconteceu?Nada havia a fazer senão contar a verdade, o padre narrou a cena que presenciou a caminho de lá.Felipa gritava:- Eu jamais darei um só grito, mesmo que me matem a chibatada... ninguém verá verter uma só lágrima do meu rosto!!! Por isso gritaram tanto, como devem ter sido torturados... Por que, padre? Por quê? Já não iam embora de qualquer forma, a sorte que os espera em Portugal não é pior do que a daqui? Por quê?- Esqueça Felipa, esqueça, nada disso lhe irá acontecer.- Como não? Por acaso eu estou aqui a passar férias? Achas que sou burra e não entendo qual será o meu castigo? Mas não gritarei, jamais!!!E permaneceram abraçados por algum tempo. Pedro sabia que lhe trazia conforto, pode sentir a calma ir voltando aos poucos, achava melhor não tocar em assunto nenhum hoje.Felipa levanta os olhos e diz:- Não sei quanto tempo me resta, preciso falar, vamos começar logo com isso, tenho que ter tempo, pegue nas suas coisas, vamos...A excitação com que falava demonstrava o medo que sentia, mas fez o que lhe foi pedido.- Posso começar? Posso?- Sim, minha filha, pode - respondeu, preocupado com o estado de Felipa.- Vivi esse amor durante dois anos e não a esqueci. Um dia estávamos sentadas na beira do mar conversando, brincando, mexendo na areia, quando ela se virou para mim e disse, num tom muito sério: – Preciso falar contigo, Felipa – Eu sabia que alguma coisa estava por acontecer, nunca naqueles dois anos ouvi a sua voz naquele tom. Ainda tentando brincar, respondi: - Fala logo, senão atiro-te areia! - Mas ela repetiu: – Por favor, escuta-me, é sério! – Eu não queria ouvir, com medo do que ela me dissesse que o seu amor tinha acabado. Eu matava-me!Ela continuou: - Preciso partir... - Eu respondi: - Mas tu viajas muito, Lise, qual é o problema disso? - Ela nunca foi dura comigo, mas naquele dia foi diferente. - Preciso de uma resposta tua agora! – Novamente tentando amenizar eu disse: - O que queres que eu diga, vamos, fala? – Ela segurou-me nos braços e despejou uma dura realidade: - Tu sabes que preciso de viajar muito - eu sei - só que desta vez vou para sempre – quase desmaiei, ela segurou-me e continuou: – Quero que vás comigo embora daqui. - Fiquei sem fala, não raciocinava direito, a frase ir embora daqui ficava martelando na minha cabeça. Tentei desviar os olhos, não responder, mas ela estava irredutível. – Responde à minha pergunta, Felipa!!! – O meu casamento - pensava eu. Mas não conseguia dizer nada. - Tenho que voltar para a França com urgência. – Nunca tinha tido que tomar uma decisão tão difícil na vida. Ir com Lise ou ficar com Francisco? Se fosse com ela ele morreria, pensava eu. Se não fosse com ela, quem morreria seria eu.Fitando a porta como se pudesse ter tomado a decisão antes, continuou:- E o Francisco, Lise? O que será da vida dele? – ela insistia – e a minha vida, e a tua? E o que sentimos? – Lembro-me como se fosse hoje, padre, segurei a minha cabeça como se fosse enlouquecer, e disse não posso, não posso!Da mesma forma que descrevera estava agora, segurando sua cabeça.- Ela levantou-se e partiu. Fiquei sentada na areia um longo tempo, a noite estava quase a chegar quando decidi ir com ela, corri até à sua casa, bati à porta como louca, não parava de bater, depois de algum tempo aparece um escravo, eu perguntei – Onde está Lise? – a resposta paralisou-me – Foi-se embora, madame, e já faz umas duas horas.Eu não podia acreditar que ela tinha ido sem ao menos se despedir de mim, agarrei-me ao batente da porta sentindo que iria desmaiar, e gritava, já não falava: - Para onde foi ela, diga-me, para onde??? - Partiu num navio que ia para o Rio de Janeiro e de lá sei que ia para a terra dela. - Sentei-me no chão em prantos, morta por dentro. O escravo olhava-me e não entendia nada, provavelmente. Fiquei assim até noite alta. Depois de chorar todas as minhas lágrimas, voltei para casa, o meu marido estava preocupado, foi ao meu encontro e disse – Que houve contigo, Felipa? Onde estiveste até agora? Sei que não estavas com Elise, pois ela passou por aqui para te deixar uma carta, onde estavas, mulher? – Eu nada respondi, peguei na carta das mãos de Francisco e fui para o meu quarto. Sentei-me na cama e li: “minha amada, sabia que não virias comigo, pois conheço o teu caracter e sei que não suportarias deixar Francisco em tal situação. Fui sem me despedir, pois não suportaria deixar-te e embarcar sem provavelmente fazer com que Salvador inteiro soubesse que te amo. Quero que saibas que nunca amei ninguém como te amo, e sei que carregarei esse amor pelo resto da minha vida. O que posso dizer-te mais, não tenho forças para escrever nem uma linha. Fica certa do meu amor por ti, e que não importa onde eu esteja amar-te-ei eternamente.”.- Padre, foi a maior perda da minha vida, acho que até maior do que a vida que sei que perderei.O seu olhar estava vazio naquele instante. Pedro sentiu como aquela mulher havia sofrido com a separação da sua amada, continuou em silêncio quando ouve a pergunta:- Será que pelo nome dela eles podem localizá-la? Não quero que isso aconteça, mas quero fazer um pedido ao senhor, depois que tudo isto passar tente encontrá-la e dizer o quanto a amei e ainda amo, que cheguei a procurar por ela, mas os meus recursos eram poucos, infelizmente nada consegui.O padre comprometeu-se a fazer a sua vontade. E faria!- Você quer continuar ou prefere que paremos por hoje?Felipa respondeu ainda aflita:- Preciso continuar, não sei quanto tempo me resta. Depois que ela se foi, caí numa apatia sem igual, passei meses sem querer fazer nada, nem costurar, que sempre foi a minha alegria. Francisco via o meu estado e tentava animar-me, contava casos engraçados, mas nada me tirava daquela inércia, nada, foram meses, longos meses, quase um ano. Mas, como dizem, a vida continua, e aos poucos fui ganhando forças para voltar a enfrentar o mundo. Nada tinha graça, nada fazia-me feliz, sentia a falta da presença dela, física e emocional. Fui tocando a vida, as minhas costuras e o meu viver sem graça. Às vezes sentia que não recuperaria-me jamais, e é verdade, jamais recuperei-me da partida de Lise, nunca mais fui feliz. Deves saber como é difícil perder alguém que se ama, e olhe que o meu pai já havia morrido antes de eu conhecer Lise.Como se lembrasse de alguma coisa importante prosseguiu:- Não lhe contei como o meu pai morreu. Uns meses antes de conhecer Lise, a minha mãe já não morava aqui há anos, mas o meu pai continuava com a mesma vida de sempre. De repente ele começou a passar mal, muito mal mesmo, nunca tinha demonstrado problema nenhum com a saúde, mas começamos a perceber, mesmo que não se queixasse, que umas manchas lhe apareciam na pele. O seu cabelo começou a cair, foi tudo muito estranho e rápido, andava mais nervoso do que o normal. Com o tempo foi passando a enxergar pouco, levamo-lo ao doutor, ele disse que o meu pai estava com sífilis, sem cura, nada poderia fazer para que se curasse. Foi um sofrimento ver o meu pai definhando a cada dia, até que de tão doente que estava não agüentou mais, e veio a falecer. Foi triste, avisei a minha mãe do ocorrido, mas nem daria para ela vir para o enterro. Foi assim, coitado, que Deus o tenha!!! O senhor sabe, a minha ligação com ele não era assim cheia de atenções, mas eu amava-o, foi triste vê-lo morrer devagarinho. A vida é assim, uns morrem, outros nascem, tudo está sempre a rodar, eu sei isso. No dia em que eu for embora, com certeza alguém vai nascer naquele dia, é assim, padre, vão uns, chegam outros.O padre corta-lhe um pouco o assunto e conta a conversa que tinha tido com o Bispo na noite passada. Ela riu e disse:- Acho que ele me vai dar mais comida para ver se eu falo mais depressa.Curiosa, pergunta a Pedro:- E a tua família, padre, onde está?Sem jeito e envergonhado sem saber por quê, responde:- Não tenho família, Felipa, fui abandonado num seminário. Criado por padres, acabei tornando-me um.- Como assim não tem família, toda a gente tem? Pode até não saber quem é, mas que tem, tem!!! Nunca quis saber quem eram? Não teve curiosidade?- As coisas num seminário são bem diferentes que fora dele, lá diziam-me que tinha sido a vontade de Deus que eu tivesse sido abandonado ali, nem adiantava ir procurar porque jamais encontraria alguém. Diziam que, se alguém fazia aquilo, devia sentir no coração que essa era a vocação da criança, que ela ficaria melhor sendo educada por eles.- Velhacos sem vergonha estes que o criaram, o senhor desculpe, mas tenha lá santa paciência, enganar um menino dessa maneira, isso sim é pecado!!!- Acostumei-me tanto a ouvir isso que acreditei ser verdade, hoje já não importa.- Pois devia importar-se, sim, quem sabe a tua mãe ainda está viva? Que barbaridade!!! Se já não tinha motivo nenhum para gostar deste povo, agora tenho menos ainda.A porta fez o rangido de que estava sendo aberta e a conversa cessou.Despediram-se, cada um foi para seu canto com seus pensamentos.

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