Salvador, capital da colônia Portuguesa do Brasil, final do ano de 1591.A cidade vivia cheia de medo e apreensão. Visitadores do Tribunal da Santa Inquisição lá se instalaram em busca de pessoas que denunciassem hereges, cristão-novos, judeus e praticantes de atos imorais, além dos que não agissem de acordo com a fé católica apostólica romana.Crimes que antes não eram da alçada dos inquisidores, como os sexuais, passaram a ser considerados ofensas graves, principalmente bigamia, sodomia e a bestialidade.No Nordeste, a população era constituída por mais de trinta por cento de judeus, incentivados pelo governo português a fixar moradia no Brasil. A relação entre judeus e cristãos era até então de relativa paz; residia também ali um grande número de cristão-novos, os quais viviam a mesma situação de terror, já que se sabiam alvos diretos da Inquisição.Havia um patrulhamento da fé e de pensamentos: seu vizinho, seu filho, seu amante poderiam ser seus delatores. Não se podia confiar em ninguém.Em meio a esse clima, em meio ao povo que ia e vinha, caminhava o padre Pedro Martins. Subia a ladeira em direção à prisão onde estavam os acusados da Santa Inquisição que faziam parte do Tribunal de Lisboa. Não seriam julgados no Brasil. Pelo menos a grande maioria era encaminhada para o legítimo tribunal, em Portugal.O padre era jovem, mas a subida da ladeira já o deixava esgotado. Parecia que a curiosidade saía por seus poros em forma de suor. Visitaria uma mulher acusada de crime sexual, e só o fato em si já era inusitado. Enquanto caminhava, sua mente cristã se envolvia em mil teorias sobre aquela mulher.“Que anomalia!!!! Será que tem aparência normal de mulher? E o corpo, possui a mesma estrutura? Seria mesmo possível tal acusação? Como se dava o fato, afinal eram duas mulheres, aquilo contrariava todas as possíveis explicações! Deus não fez o corpo para ser usado dessa forma, que tipo de sensação teriam? As mulheres não foram feitas para cumprir o papel do homem, será que esta teria o corpo disforme na sua anatomia sexual?”.Quase nem se deu conta de que já estava diante da escadaria do prédio. Cansado, parou alguns segundos e subiu os cinco lances que o levariam até o guarda na porta do local.Cumprimentou o jovem:-Bom dia, meu filho!O rapaz se levantou confuso, não sabia se pedia a bênção ou se batia continência. Percebendo a indecisão do moço o padre o abençoou, perguntando onde poderia encontrar o sargento Dias, que o aguardava, pois tinha ordens expressas do Bispo para visitar uma das presas.E escuta o guarda lhe perguntar, cheio de maledicência:- O senhor veio aqui falar com uma das filhas do demônio? – riu – É só chegar àquela mesa ali e pedir para avisarem o sargento.O padre agradeceu e seguiu as instruções.Aquele lugar tinha uma aparência asquerosa, fosse pela sujeira acumulada, fosse pelas paredes úmidas, como se acima delas houvesse uma goteira. Parecia um lugar esquecido pelos homens e por Deus.Chegou até à sala do sargento, apresentou-se e repetiu o que havia dito anteriormente. O militar levantou-se e acompanhou-o até a cela em que encontraria a mulher.Desceram as escadas e pararam diante de uma das portas feitas de madeira maciça. Podia sentir-lhe o peso apenas olhando para ela, “um tronco de madeira”, pensou o padre.Encravada na peça estava uma pequena abertura, por onde, provavelmente, eram para ser entregues os alimentos.Observando por essa passagem, viu sentada em um canto a figura de uma mulher.Trajava uma espécie de camisolão feito de um tecido grosseiro que mais parecia um saco. A vestimenta rude dava a estranha sensação de incomodar a pele da mulher, que aparentava delicadeza.A prisioneira tinha o olhar vago, como se pudesse ver o nada e soubesse o que nele continha. O padre afastou o rosto do vão e deu licença ao sargento, já impaciente com algumas de suas atitudes, assim o demonstrando sem o menor constrangimento. Bateu pesado na porta, gritando que um padre queria vê-la.Ela responde:- Deixe que entre!O rangido da porta se abrindo era assustador e alto, como se arranhasse o chão de pedra.Parado na porta sem saber o que fazer o padre lhe dirige a palavra:- Bom dia, Felipa! Eu posso entrar?Ele sabia toda a história da acusação dessa mulher, e admirou-se com o que viu: uma mulher de trinta e cinco anos que mais lhe parecia uma velha. Não por marcas da vida, mas pela falta de vida que havia em seu rosto. Não possuía sinal algum de esperança, nada lembrava que ali habitava uma alma.O padre trazia em suas mãos uma Bíblia, pois sabia que Felipa era letrada e sua intenção era lhe dar o livro. Ele não a salvaria do crime que lhe fora imputado, mas ela poderia conseguir, ao ler o livro, paz de espírito e arrependimento.Um carcereiro lhe trouxe uma cadeira, que ele arrastou para perto da mulher.Sem querer olhar diretamente para o padre, Felipa analisou aquela pessoa à sua frente. Apesar de vestido como todos os urubus que a visitavam, esse tinha alguma coisa diferente, não era velho como os outros e conseguia transmitir confiança, talvez pela aparência de inocência que trazia no rosto muito jovem. Mas se estava ali, com certeza era pelo mesmo motivo pelo qual todos estiveram, e perderia seu valioso tempo.Sem saber muito bem que atitude tomar, o padre falou a primeira bobagem que lhe veio à cabeça:- Estás pronta para falar?Ela ergueu suavemente a cabeça, cheia de desafio nos olhos, e disse:- És por acaso igual a esse velhacos que fazem interrogatórios?Pára, fixa os olhos nos dele, e continua:- Que esperas que eu lhe diga? Diz-me o senhor o motivo de estar eu aqui? Quem colocou-me cá atrás destas paredes? Será não há quem perceba que nada sei de minha estada aqui?Pedro captou o ódio daquela mulher, embora o tom de sua voz fosse da mais absoluta tristeza. Sentiu-se envaidecido por ela ter falado com ele, quantos tentaram antes e não conseguiram, muitos!! Muitos e mais experientes que ele, que saíra do seminário recentemente. Percebendo que a vaidade havia tomado seus pensamentos, culpa-se e pede perdão a Deus. Nervoso pela missão que a ele havia sido incumbida, espera que a conversa não acabe ali e procura estendê-la:- Filha, cá estou apenas para ouvi-te. Diga-me o que quiser. Não vou interrogar-te.Na verdade era isso mesmo que queria fazer, ser um inquisidor pelo menos uma vez na vida, mas não seria essa a sua função. Como gostaria de poder contribuir com a Santa Madre Igreja e o Papa!- Que queres de mim? Sabe por que cá estou? Era mais fácil que lesse os autos, porque eu mesma nada sei, não posso ser de grande ajuda. Vais me julgar e condenar-me na minha própria ignorância!! És igual a todos aqueles velhacos que escondem-se por detrás desta batina. “Urubu”!A voz de Felipa mal saía da sua garganta, era baixa e sem nenhuma emoção.Não poderia ser assim comparado. Não!!!! Não era isso o que faria, não a culparia sem ouvi-la!! Se a mulher quisesse falar, que falasse, da maneira que fosse, estava ali para ouvi-la. Diz:- Não estou cá para isso! Apenas ouvirte-te, para o que quiseres dizer. Converses comigo, apenas. Fales. Quem sabe não é isto que precisas?Estranhando a própria voz cheia de compreensão, olha para ela e espera alguma reação.A mulher se ajeita na palha seca, levanta os olhos marejados e vazios, como uma nau afundando.Ela lhe faz uma pergunta tola:- Vieste o senhor de Portugal? – dá de ombros e, como se falasse consigo mesma, resmunga – Quase todos que vivem cá de lá vieram.E continuou:- Vim-me ainda menina, de nove para dez anos. Lembro-me daquela viagem como se fosse hoje. Poderíamos nós falar sobre isto?Num aceno de cabeça, como que para não quebrar o encanto, o padre prepara-se para ouvi-la.- Minha história não é diferente da história das demais crianças que de lá vieram para cá. De Portugal lembro-me pouco, muito pouco. Mas de minha viagem para cá, jamais esqueceria! Vim com os meus pais. A minha mãe, coitadinha, estava apavorada por vir para esta terra de selvagens, o meu pai nem dava conta do que ela pensava, a decisão de mudarmos foi dele. Que Deus o tenha em bom lugar! Mas eu percebia como ela estava com medo.Parou de falar, lembrou-se da mãe - “provavelmente nunca mais a verei”.- Havia uma relação muito forte, assim o éramos por ela contar comigo e eu com ela. Ensinou-me a viver, a procurar a felicidade, embora não saiba disso. Chegamos cá em Janeiro, não me recordo quando saímos de lá. Aquela aventura ao mar foi uma grande diversão, afinal nunca havia saído da minha cidade.Quase falando para si mesma, continuou:- Não entendo como nunca visitamos parentes, mesmo os meus avós. Mas o passado a ele pertence, não questiono mais. Certo ou errado! – disse, em tom de conformação.- O capitão de nossa embarcação chamava-se Fernão Albuquerque, nunca esquecer-me-ei deste homem! Era admirável, e olhe que não digo isso só por mim. Todos o consideravam assim.Um pequeno sorriso escapa do seu rosto.- Eis um homem que nasceu para comandar, forte, muito altivo e enorme, muito alto mesmo... Talvez diga isso porque era pequena. Não, não, ele realmente era muito alto. Afeiçoei-me a este homem quase como a um pai, e ele a mim. Gostava da Felipa, e não da criança que era eu. Uma vez fiz-lhe uma pergunta que o fez dar uma gostosa gargalhada: – Por acaso com o sangue das tuas veias, corre água do mar? - Ele riu, riu muito, encantou-me vê-lo rir daquele jeito.Aconteciam coisas estranhas ali, a maioria das pessoas passava muito mal, vomitavam sem parar. Eu mesma não sentia nada, mas todos viviam enjoados, pendurados nas muradas. A mim era um sonho, mas para muitos foi um pesadelo. Conforto não tínhamos nenhum... nada... nenhum conforto. Dormíamos num único alojamento, todos misturados, homens, mulheres e crianças.O senhor tens idéia de como fede um alojamento daqueles depois de um mês? Um mês é muito! Poucos dias... pode imaginar? Nem queira! Fede, Padre, fede à urina, fezes, suor, é um fedor insuportável. Quanto mais tempo passava mais fedia. Muitas e muitas noites eu saía escondida e ia dormir no convés sem que ninguém me visse. Preferia isto a dormir com aquele cheiro horroroso.Era muito inocente, toda criança é. Só dei conta da distância que havia entre o meu pai e a minha mãe dentro daquele barco. Ela não queria lá estar, e nunca entendi porque meu pai, como tantos outros, não largou a família em Portugal e veio para a colônia sozinho. Até hoje pergunto-me qual foi a razão que ele teve para trazer-nos para o que a minha mãe chamava de fim de mundo, e que para mim hoje é o meu pesadelo! – E calou-se, passando a limpo a sua vinda a Salvador.O padre, inexperiente, não sabia se pedia que ela continuasse ou se permanecia em silêncio. Até para Deus apelou, até que, do nada, ouviu a voz de Felipa novamente:- Meu pai era um homem sonhador e veio atrás dos seus sonhos, apesar de todos os protestos. Não era de muito carinho, este era o seu feitio. Sabia que ele amava me, era isto que me importava. Foi um bom pai. Que Deus o tenha! Apesar de não ter sido um bom marido, mas isto era lá entre ele e a minha mãe, não era problema meu. Ao desembarcarmos cá, fomos até ao que parecia ser um alojamento para os recém-chegados esperar que orientassem-nos sobre o que fazer. Foi difícil dizer adeus ao Capitão, nos poucos meses que passamos juntos amei-o como a um pai. Sei que não foi difícil só para mim, sei muito bem disso...Olhou para o padre e disse:- Será que existe destino, padre? Tudo o que vivemos cá no mundo já está traçado por Deus? Porque o destino pregou-me boas peças, ruins também. Coisas que acontecem na vida às vezes formam um emaranhado que só Deus pode desatar. Eu sabia que veria o Capitão outra vez, era uma certeza que tinha no meu coração, e aconteceu mesmo. Muito tempo depois.E continuou, para satisfação do padre:- Adaptar-se aqui não foi problema, meu pai tinha consigo uma boa quantidade de dinheiro, lembro-me que por muito tempo comentou com a minha mãe que estava a economizar. Devia ganhar boas gorjetas – disse, encolhendo os ombros. – Depressa arranjamos uma casa, que era muito melhor que a de lá.E acrescenta em voz alta: – A vida lá não era fácil, não, nada fácil.Sorrindo timidamente, prosseguiu:- A primeira vez que saí a passear com a minha mãe aqui, apanhei um grande susto, não tinha reparado o quanto esta cidade se parecia com uma cidade portuguesa. Talvez pela pouca idade, achei que tivéssemos voltado para lá.Depois vim a saber que Salvador foi mesmo construída para ser um pequeno Portugal. As casas eram iguais às de lá, as ruas, assim como os prédios do governo. Tudo se parecia muito. Salvador é uma réplica de qualquer cidade lusitana. Acredito que até para matar a saudade do povo. A minha mãe divertiu-se muito com minha confusão.Contei-lhe da minha casa? Lembro-me de como era linda, a luz do sol entrava pelas janelas, pela primeira vez tive um quarto. Tudo nela era lindo!Acho que entendo meu pai, nossa vida lá era sofrida, meu pai vivia insatisfeito com tudo que fazia. Quando casou-se com minha mãe, trabalhava como ferreiro, lembro-me dele assim, enquanto criança. Depois de um tempo, acho que se cansou e veio a ser taberneiro. Que mudança, hem, padre? De bater em ferros foi servir bebida para os marinheiros. O seu sonho deve ter começado ali, de tanto conviver com aqueles homens que vinham do mar. O sonho de que iria construir alguma coisa de que gostasse num lugar novo, inexplorado.Admirada, diz:- Sabias que a primeira vez que vi um negro foi cá? Aliás, foi cá que vi quase tudo pela primeira vez . Índios... vi aos montes, e as frutas???? Com certeza já as comeu. Como são saborosas as frutas daqui! Os nomes são estranhos, mas o gosto... hummm... Faz tempo que não como fruta... – disse para si mesma.O seu estômago roncou e lembrou-se do sabor das mais variadas frutas.- Pitanga, jenipapo, carambola, cupuaçu, manga... ah, manga! Gosto muitíssimo de manga, acho bom de comer, mas não se pode comer na frente de ninguém, lambuzo-me toda, e não sobra nada, não, chego a chupar até o caroço!O padre não estava preparado para a sensualidade com a qual ela descreveu a degustação da fruta. Inquieto, remexeu-se na cadeira como tentando disfarçar o impacto causado pela simples imagem da mulher comendo manga.Felipa continuou falando como se precisasse expurgar o passado para poder esquecer o presente.- Não lembro-me do gosto das frutas em Portugal, mas tenho certeza de que as de cá não se comparam às de lá. São muito melhores, têm sabor, substância.Como se lembrasse que ele estava a ouvir, pergunta:- Estás há muito tempo cá? Já provastes caju? Aqueles enormes, amarelos, que sabor!! Às coisas boas acostumamo-nos depressa.Continuou:- Meu pai pôde abrir uma loja que vendia ferragens, já que ele entendia do assunto, e era negócio próprio. A minha mãe não mudou quase em nada o que fazia, cuidava da casa e de mim. Ela costura bem, ou costurava, não sei se hoje ainda o faz, mas nunca como ofício. Ensinou-me, aprendi, fiquei melhor do que ela. Fui a melhor costureira de Salvador! Acho que ainda sou!Viajava por onde a sua memória a levava.- Lembro-me da minha infância, sem muitas crianças para brincar. Mas eu já não era tão criança assim. Aparecia sempre lá em casa uma negrinha, a mãe trabalhava na mesma rua, não muito longe, para uma velha, ô velha chata! Eu nunca havia entendido, naquela idade, por que não se podia misturar a cor das pessoas. Brancos são brancos, negros... Bem, negros não são nada, muitos diziam que não eram nem gente, que não possuíam inteligência ou alma.Pergunta:- Isto lá é verdade? Não acredito que Deus não lhes tenha dado alma, são tão gente quanto eu, carne, osso, sangue, tudo igual, não muda nada. Não acredito nesta história, e o senhor pode até dizer me que é verdade, mas não vou acreditar!O padre agradeceu a Deus por ela ter esquecido a pergunta.- Mentira, padre, tudo mentira. A minha amiga, o nome dela é Quitéria, era tão inteligente quanto eu. O senhor sabes que eu tive conhecimento das letras, ela também teve, não sei como, com aquela velha chata dona delas. Quando crescemos um pouquinho mais, idade de menina moça, não deixaram-me voltar a vê-la. Nunca entendi! Lembro-me de uma tarde em que estávamos a brincar na rua, e a velha veio com uma cara furiosa atrás da minha amiga... Tem certas coisas que ficam marcadas na cabeça da gente e parece que nem lavando saem. A velha chegou e bateu na cara da Quitéria!! Padre, aquilo revoltou-me, eu queria bater na mulher quando vi o sangue a escorrer da boca da pobrezinha. E bateu-lhe só porque estava à procura da menina e não a achava. Nós morávamos na mesma rua, e nem à porta a mulher apareceu. Certas coisas revoltam-me!!!Nesse momento, ouviram o carcereiro gritar que a hora tinha acabado. O padre levanta-se, deixa a Bíblia perto dela, e diz:- Minha filha, sei que não és analfabeta, como me disses, por isso trouxe-lhe a Palavra de Deus para que possas ler se assim o desejar. Com toda certeza irá fazer-lhe bem.Sem olhar para o livro, Felipa observou o padre sair e voltou a deitar-se, procurando que algo nos seus pensamentos pudesse dar-lhe descanso.
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
CAPÍTULO I
Salvador, capital da colônia Portuguesa do Brasil, final do ano de 1591.A cidade vivia cheia de medo e apreensão. Visitadores do Tribunal da Santa Inquisição lá se instalaram em busca de pessoas que denunciassem hereges, cristão-novos, judeus e praticantes de atos imorais, além dos que não agissem de acordo com a fé católica apostólica romana.Crimes que antes não eram da alçada dos inquisidores, como os sexuais, passaram a ser considerados ofensas graves, principalmente bigamia, sodomia e a bestialidade.No Nordeste, a população era constituída por mais de trinta por cento de judeus, incentivados pelo governo português a fixar moradia no Brasil. A relação entre judeus e cristãos era até então de relativa paz; residia também ali um grande número de cristão-novos, os quais viviam a mesma situação de terror, já que se sabiam alvos diretos da Inquisição.Havia um patrulhamento da fé e de pensamentos: seu vizinho, seu filho, seu amante poderiam ser seus delatores. Não se podia confiar em ninguém.Em meio a esse clima, em meio ao povo que ia e vinha, caminhava o padre Pedro Martins. Subia a ladeira em direção à prisão onde estavam os acusados da Santa Inquisição que faziam parte do Tribunal de Lisboa. Não seriam julgados no Brasil. Pelo menos a grande maioria era encaminhada para o legítimo tribunal, em Portugal.O padre era jovem, mas a subida da ladeira já o deixava esgotado. Parecia que a curiosidade saía por seus poros em forma de suor. Visitaria uma mulher acusada de crime sexual, e só o fato em si já era inusitado. Enquanto caminhava, sua mente cristã se envolvia em mil teorias sobre aquela mulher.“Que anomalia!!!! Será que tem aparência normal de mulher? E o corpo, possui a mesma estrutura? Seria mesmo possível tal acusação? Como se dava o fato, afinal eram duas mulheres, aquilo contrariava todas as possíveis explicações! Deus não fez o corpo para ser usado dessa forma, que tipo de sensação teriam? As mulheres não foram feitas para cumprir o papel do homem, será que esta teria o corpo disforme na sua anatomia sexual?”.Quase nem se deu conta de que já estava diante da escadaria do prédio. Cansado, parou alguns segundos e subiu os cinco lances que o levariam até o guarda na porta do local.Cumprimentou o jovem:-Bom dia, meu filho!O rapaz se levantou confuso, não sabia se pedia a bênção ou se batia continência. Percebendo a indecisão do moço o padre o abençoou, perguntando onde poderia encontrar o sargento Dias, que o aguardava, pois tinha ordens expressas do Bispo para visitar uma das presas.E escuta o guarda lhe perguntar, cheio de maledicência:- O senhor veio aqui falar com uma das filhas do demônio? – riu – É só chegar àquela mesa ali e pedir para avisarem o sargento.O padre agradeceu e seguiu as instruções.Aquele lugar tinha uma aparência asquerosa, fosse pela sujeira acumulada, fosse pelas paredes úmidas, como se acima delas houvesse uma goteira. Parecia um lugar esquecido pelos homens e por Deus.Chegou até à sala do sargento, apresentou-se e repetiu o que havia dito anteriormente. O militar levantou-se e acompanhou-o até a cela em que encontraria a mulher.Desceram as escadas e pararam diante de uma das portas feitas de madeira maciça. Podia sentir-lhe o peso apenas olhando para ela, “um tronco de madeira”, pensou o padre.Encravada na peça estava uma pequena abertura, por onde, provavelmente, eram para ser entregues os alimentos.Observando por essa passagem, viu sentada em um canto a figura de uma mulher.Trajava uma espécie de camisolão feito de um tecido grosseiro que mais parecia um saco. A vestimenta rude dava a estranha sensação de incomodar a pele da mulher, que aparentava delicadeza.A prisioneira tinha o olhar vago, como se pudesse ver o nada e soubesse o que nele continha. O padre afastou o rosto do vão e deu licença ao sargento, já impaciente com algumas de suas atitudes, assim o demonstrando sem o menor constrangimento. Bateu pesado na porta, gritando que um padre queria vê-la.Ela responde:- Deixe que entre!O rangido da porta se abrindo era assustador e alto, como se arranhasse o chão de pedra.Parado na porta sem saber o que fazer o padre lhe dirige a palavra:- Bom dia, Felipa! Eu posso entrar?Ele sabia toda a história da acusação dessa mulher, e admirou-se com o que viu: uma mulher de trinta e cinco anos que mais lhe parecia uma velha. Não por marcas da vida, mas pela falta de vida que havia em seu rosto. Não possuía sinal algum de esperança, nada lembrava que ali habitava uma alma.O padre trazia em suas mãos uma Bíblia, pois sabia que Felipa era letrada e sua intenção era lhe dar o livro. Ele não a salvaria do crime que lhe fora imputado, mas ela poderia conseguir, ao ler o livro, paz de espírito e arrependimento.Um carcereiro lhe trouxe uma cadeira, que ele arrastou para perto da mulher.Sem querer olhar diretamente para o padre, Felipa analisou aquela pessoa à sua frente. Apesar de vestido como todos os urubus que a visitavam, esse tinha alguma coisa diferente, não era velho como os outros e conseguia transmitir confiança, talvez pela aparência de inocência que trazia no rosto muito jovem. Mas se estava ali, com certeza era pelo mesmo motivo pelo qual todos estiveram, e perderia seu valioso tempo.Sem saber muito bem que atitude tomar, o padre falou a primeira bobagem que lhe veio à cabeça:- Estás pronta para falar?Ela ergueu suavemente a cabeça, cheia de desafio nos olhos, e disse:- És por acaso igual a esse velhacos que fazem interrogatórios?Pára, fixa os olhos nos dele, e continua:- Que esperas que eu lhe diga? Diz-me o senhor o motivo de estar eu aqui? Quem colocou-me cá atrás destas paredes? Será não há quem perceba que nada sei de minha estada aqui?Pedro captou o ódio daquela mulher, embora o tom de sua voz fosse da mais absoluta tristeza. Sentiu-se envaidecido por ela ter falado com ele, quantos tentaram antes e não conseguiram, muitos!! Muitos e mais experientes que ele, que saíra do seminário recentemente. Percebendo que a vaidade havia tomado seus pensamentos, culpa-se e pede perdão a Deus. Nervoso pela missão que a ele havia sido incumbida, espera que a conversa não acabe ali e procura estendê-la:- Filha, cá estou apenas para ouvi-te. Diga-me o que quiser. Não vou interrogar-te.Na verdade era isso mesmo que queria fazer, ser um inquisidor pelo menos uma vez na vida, mas não seria essa a sua função. Como gostaria de poder contribuir com a Santa Madre Igreja e o Papa!- Que queres de mim? Sabe por que cá estou? Era mais fácil que lesse os autos, porque eu mesma nada sei, não posso ser de grande ajuda. Vais me julgar e condenar-me na minha própria ignorância!! És igual a todos aqueles velhacos que escondem-se por detrás desta batina. “Urubu”!A voz de Felipa mal saía da sua garganta, era baixa e sem nenhuma emoção.Não poderia ser assim comparado. Não!!!! Não era isso o que faria, não a culparia sem ouvi-la!! Se a mulher quisesse falar, que falasse, da maneira que fosse, estava ali para ouvi-la. Diz:- Não estou cá para isso! Apenas ouvirte-te, para o que quiseres dizer. Converses comigo, apenas. Fales. Quem sabe não é isto que precisas?Estranhando a própria voz cheia de compreensão, olha para ela e espera alguma reação.A mulher se ajeita na palha seca, levanta os olhos marejados e vazios, como uma nau afundando.Ela lhe faz uma pergunta tola:- Vieste o senhor de Portugal? – dá de ombros e, como se falasse consigo mesma, resmunga – Quase todos que vivem cá de lá vieram.E continuou:- Vim-me ainda menina, de nove para dez anos. Lembro-me daquela viagem como se fosse hoje. Poderíamos nós falar sobre isto?Num aceno de cabeça, como que para não quebrar o encanto, o padre prepara-se para ouvi-la.- Minha história não é diferente da história das demais crianças que de lá vieram para cá. De Portugal lembro-me pouco, muito pouco. Mas de minha viagem para cá, jamais esqueceria! Vim com os meus pais. A minha mãe, coitadinha, estava apavorada por vir para esta terra de selvagens, o meu pai nem dava conta do que ela pensava, a decisão de mudarmos foi dele. Que Deus o tenha em bom lugar! Mas eu percebia como ela estava com medo.Parou de falar, lembrou-se da mãe - “provavelmente nunca mais a verei”.- Havia uma relação muito forte, assim o éramos por ela contar comigo e eu com ela. Ensinou-me a viver, a procurar a felicidade, embora não saiba disso. Chegamos cá em Janeiro, não me recordo quando saímos de lá. Aquela aventura ao mar foi uma grande diversão, afinal nunca havia saído da minha cidade.Quase falando para si mesma, continuou:- Não entendo como nunca visitamos parentes, mesmo os meus avós. Mas o passado a ele pertence, não questiono mais. Certo ou errado! – disse, em tom de conformação.- O capitão de nossa embarcação chamava-se Fernão Albuquerque, nunca esquecer-me-ei deste homem! Era admirável, e olhe que não digo isso só por mim. Todos o consideravam assim.Um pequeno sorriso escapa do seu rosto.- Eis um homem que nasceu para comandar, forte, muito altivo e enorme, muito alto mesmo... Talvez diga isso porque era pequena. Não, não, ele realmente era muito alto. Afeiçoei-me a este homem quase como a um pai, e ele a mim. Gostava da Felipa, e não da criança que era eu. Uma vez fiz-lhe uma pergunta que o fez dar uma gostosa gargalhada: – Por acaso com o sangue das tuas veias, corre água do mar? - Ele riu, riu muito, encantou-me vê-lo rir daquele jeito.Aconteciam coisas estranhas ali, a maioria das pessoas passava muito mal, vomitavam sem parar. Eu mesma não sentia nada, mas todos viviam enjoados, pendurados nas muradas. A mim era um sonho, mas para muitos foi um pesadelo. Conforto não tínhamos nenhum... nada... nenhum conforto. Dormíamos num único alojamento, todos misturados, homens, mulheres e crianças.O senhor tens idéia de como fede um alojamento daqueles depois de um mês? Um mês é muito! Poucos dias... pode imaginar? Nem queira! Fede, Padre, fede à urina, fezes, suor, é um fedor insuportável. Quanto mais tempo passava mais fedia. Muitas e muitas noites eu saía escondida e ia dormir no convés sem que ninguém me visse. Preferia isto a dormir com aquele cheiro horroroso.Era muito inocente, toda criança é. Só dei conta da distância que havia entre o meu pai e a minha mãe dentro daquele barco. Ela não queria lá estar, e nunca entendi porque meu pai, como tantos outros, não largou a família em Portugal e veio para a colônia sozinho. Até hoje pergunto-me qual foi a razão que ele teve para trazer-nos para o que a minha mãe chamava de fim de mundo, e que para mim hoje é o meu pesadelo! – E calou-se, passando a limpo a sua vinda a Salvador.O padre, inexperiente, não sabia se pedia que ela continuasse ou se permanecia em silêncio. Até para Deus apelou, até que, do nada, ouviu a voz de Felipa novamente:- Meu pai era um homem sonhador e veio atrás dos seus sonhos, apesar de todos os protestos. Não era de muito carinho, este era o seu feitio. Sabia que ele amava me, era isto que me importava. Foi um bom pai. Que Deus o tenha! Apesar de não ter sido um bom marido, mas isto era lá entre ele e a minha mãe, não era problema meu. Ao desembarcarmos cá, fomos até ao que parecia ser um alojamento para os recém-chegados esperar que orientassem-nos sobre o que fazer. Foi difícil dizer adeus ao Capitão, nos poucos meses que passamos juntos amei-o como a um pai. Sei que não foi difícil só para mim, sei muito bem disso...Olhou para o padre e disse:- Será que existe destino, padre? Tudo o que vivemos cá no mundo já está traçado por Deus? Porque o destino pregou-me boas peças, ruins também. Coisas que acontecem na vida às vezes formam um emaranhado que só Deus pode desatar. Eu sabia que veria o Capitão outra vez, era uma certeza que tinha no meu coração, e aconteceu mesmo. Muito tempo depois.E continuou, para satisfação do padre:- Adaptar-se aqui não foi problema, meu pai tinha consigo uma boa quantidade de dinheiro, lembro-me que por muito tempo comentou com a minha mãe que estava a economizar. Devia ganhar boas gorjetas – disse, encolhendo os ombros. – Depressa arranjamos uma casa, que era muito melhor que a de lá.E acrescenta em voz alta: – A vida lá não era fácil, não, nada fácil.Sorrindo timidamente, prosseguiu:- A primeira vez que saí a passear com a minha mãe aqui, apanhei um grande susto, não tinha reparado o quanto esta cidade se parecia com uma cidade portuguesa. Talvez pela pouca idade, achei que tivéssemos voltado para lá.Depois vim a saber que Salvador foi mesmo construída para ser um pequeno Portugal. As casas eram iguais às de lá, as ruas, assim como os prédios do governo. Tudo se parecia muito. Salvador é uma réplica de qualquer cidade lusitana. Acredito que até para matar a saudade do povo. A minha mãe divertiu-se muito com minha confusão.Contei-lhe da minha casa? Lembro-me de como era linda, a luz do sol entrava pelas janelas, pela primeira vez tive um quarto. Tudo nela era lindo!Acho que entendo meu pai, nossa vida lá era sofrida, meu pai vivia insatisfeito com tudo que fazia. Quando casou-se com minha mãe, trabalhava como ferreiro, lembro-me dele assim, enquanto criança. Depois de um tempo, acho que se cansou e veio a ser taberneiro. Que mudança, hem, padre? De bater em ferros foi servir bebida para os marinheiros. O seu sonho deve ter começado ali, de tanto conviver com aqueles homens que vinham do mar. O sonho de que iria construir alguma coisa de que gostasse num lugar novo, inexplorado.Admirada, diz:- Sabias que a primeira vez que vi um negro foi cá? Aliás, foi cá que vi quase tudo pela primeira vez . Índios... vi aos montes, e as frutas???? Com certeza já as comeu. Como são saborosas as frutas daqui! Os nomes são estranhos, mas o gosto... hummm... Faz tempo que não como fruta... – disse para si mesma.O seu estômago roncou e lembrou-se do sabor das mais variadas frutas.- Pitanga, jenipapo, carambola, cupuaçu, manga... ah, manga! Gosto muitíssimo de manga, acho bom de comer, mas não se pode comer na frente de ninguém, lambuzo-me toda, e não sobra nada, não, chego a chupar até o caroço!O padre não estava preparado para a sensualidade com a qual ela descreveu a degustação da fruta. Inquieto, remexeu-se na cadeira como tentando disfarçar o impacto causado pela simples imagem da mulher comendo manga.Felipa continuou falando como se precisasse expurgar o passado para poder esquecer o presente.- Não lembro-me do gosto das frutas em Portugal, mas tenho certeza de que as de cá não se comparam às de lá. São muito melhores, têm sabor, substância.Como se lembrasse que ele estava a ouvir, pergunta:- Estás há muito tempo cá? Já provastes caju? Aqueles enormes, amarelos, que sabor!! Às coisas boas acostumamo-nos depressa.Continuou:- Meu pai pôde abrir uma loja que vendia ferragens, já que ele entendia do assunto, e era negócio próprio. A minha mãe não mudou quase em nada o que fazia, cuidava da casa e de mim. Ela costura bem, ou costurava, não sei se hoje ainda o faz, mas nunca como ofício. Ensinou-me, aprendi, fiquei melhor do que ela. Fui a melhor costureira de Salvador! Acho que ainda sou!Viajava por onde a sua memória a levava.- Lembro-me da minha infância, sem muitas crianças para brincar. Mas eu já não era tão criança assim. Aparecia sempre lá em casa uma negrinha, a mãe trabalhava na mesma rua, não muito longe, para uma velha, ô velha chata! Eu nunca havia entendido, naquela idade, por que não se podia misturar a cor das pessoas. Brancos são brancos, negros... Bem, negros não são nada, muitos diziam que não eram nem gente, que não possuíam inteligência ou alma.Pergunta:- Isto lá é verdade? Não acredito que Deus não lhes tenha dado alma, são tão gente quanto eu, carne, osso, sangue, tudo igual, não muda nada. Não acredito nesta história, e o senhor pode até dizer me que é verdade, mas não vou acreditar!O padre agradeceu a Deus por ela ter esquecido a pergunta.- Mentira, padre, tudo mentira. A minha amiga, o nome dela é Quitéria, era tão inteligente quanto eu. O senhor sabes que eu tive conhecimento das letras, ela também teve, não sei como, com aquela velha chata dona delas. Quando crescemos um pouquinho mais, idade de menina moça, não deixaram-me voltar a vê-la. Nunca entendi! Lembro-me de uma tarde em que estávamos a brincar na rua, e a velha veio com uma cara furiosa atrás da minha amiga... Tem certas coisas que ficam marcadas na cabeça da gente e parece que nem lavando saem. A velha chegou e bateu na cara da Quitéria!! Padre, aquilo revoltou-me, eu queria bater na mulher quando vi o sangue a escorrer da boca da pobrezinha. E bateu-lhe só porque estava à procura da menina e não a achava. Nós morávamos na mesma rua, e nem à porta a mulher apareceu. Certas coisas revoltam-me!!!Nesse momento, ouviram o carcereiro gritar que a hora tinha acabado. O padre levanta-se, deixa a Bíblia perto dela, e diz:- Minha filha, sei que não és analfabeta, como me disses, por isso trouxe-lhe a Palavra de Deus para que possas ler se assim o desejar. Com toda certeza irá fazer-lhe bem.Sem olhar para o livro, Felipa observou o padre sair e voltou a deitar-se, procurando que algo nos seus pensamentos pudesse dar-lhe descanso.
CAPÍTULO II
Na manhã seguinte acordou com o corpo dolorido, lembrando-se da conversa com o padre, esperando que ele viesse outra vez.No horário mais ou menos esperado ele chegou. Percebeu a receptividade de Felipa e sentiu-se feliz, embora ela tentasse manter-se afastada.Aparentando estar preocupada, ela pergunta:- O senhor não cansas-te de me ouvir?Arrastando a cadeira, que mais uma vez o carcereiro lhe trouxe, e meneando a cabeça rapidamente, ele responde:- Não, minha filha, de maneira alguma, estou aqui para isto mesmo, queres continuar?- É muito estranho o senhor chamar-me de minha filha, tão mais moço do que eu. Tenho muito o que falar mesmo, falar do passado faz com que eu me sinta viva, e o que eu mais preciso neste momento é sentir que ainda vivo, mesmo que seja do passado, e mesmo que não saiba até quando. Aonde eu ia? Na Quitéria!!! Pois bem, mesmo que não pudéssemos ver-nos um dia, mais tarde encontramo-nos. Ela não sumiu da minha vida. Sabes que eu agradeço por ter aprendido a costurar com a minha mãe antes de casar, e tão cedo! Se fosse mais tarde...A curiosidade sobre o que ela falava levou o padre a perguntar:- O que houve minha filha, a tua mãe faleceu tão jovem?Com um leve sorriso, ela respondeu:- Não morreu, padre – e interrompeu, num clima de suspense – fugiu com o Capitão Albuquerque.Lembrando do fato, esqueceu-se de que o padre a ouvia atento.Agindo como uma boa fofoqueira, os olhos mais abertos do que o normal, ele abaixa-se um pouco e pergunta:- Como é ? Fugiu? Como assim, fugiu?Felipa não consegue conter o riso, coisa que não fazia muito ultimamente, e desata numa gargalhada.Só então o padre se dá conta do papel que havia feito. Pede mil desculpas, diz que jamais havia feito aquilo na vida, tece uma ladainha das suas virtudes e cala-se.Ainda sorrindo, Felipa continua a contar:- Lembra-se que eu disse que a minha relação com o Capitão era muito parecida com a de uma filha? Pois a da minha mãe era bem outra. Ela apaixonou-se por ele na vinda para cá. Mas só fugiram depois que eu me casei. O meu pai não era um bom marido, vivia largando a minha mãe e passando a noite toda na companhia de mulheres soltas na vida. Eu ouvia a minha mãe a chorar sozinha no quarto, ela sofreu muito com isso. E foram anos e anos. Assim que eu me casei, ela fugiu.Fita o padre e pergunta:- Queres saber sobre meu casamento e a fuga da minha mãe?Muito discretamente, ele diz que sim.- Como quase todas as meninas, casei-me muito cedo, aos dezesseis anos. O meu pai arranjou o meu casamento, o meu noivo era muito mais velho do que eu, uns vinte anos, acho eu. O meu pai dizia sem parar que eu tinha que ajudar a povoar a colônia. Povoar!!! Queria que eu tivesse dez filhos, dizia. Dez!!! Não tive nenhum, padre, nenhum!Completamente descontrolada Felipa desatou a chorar. Agarrou-se às próprias pernas, as lágrimas correndo pelo seu rosto como um veio d’água que estivesse lavando a alma, as feridas de toda uma vida.Ficam em silêncio por algum tempo.Passada a crise, enxugou o rosto com o lenço que o padre lhe estendia e continuou:- Falava de minha mãe... Durante todo este tempo ela nunca esqueceu o Capitão. Às vezes eu via que ela olhava longe, o mar para ela era um refúgio, os seus olhos fitavam as ondas como se elas fossem trazer-lhe alguma coisa, mas eu não sabia o que era. Em certos dias, quase que marcados, a minha mãe saía sem dizer aonde ia, e eu perguntava-me – onde será que ela vai? – A minha curiosidade sempre foi muito grande, num destes dias não me agüentei, segui a minha mãe. Ela arrumou-se toda, nunca tinha reparado como ela era bonita, disse que ia sair, fui atrás dela. Eu ainda não tinha dezesseis anos nessa época. Fui seguindo para ver aonde ela ia, não parou em lugar nenhum, ia andando em direção ao cais. De repente estancou em cima de uma pedra, morro, sei lá o nome daquilo, e ficou a olhar o mar. Naquele momento não entendi nada, pensei: deve ser saudades de Portugal.Um brilho nos olhos de Felipa traduzia a emoção que sentia ao falar:- Mal sabia eu o que o mar trazia para ela. Os seus olhos tinham um brilho diferente, brilho que eu nunca tinha visto igual. Era felicidade, padre, pura felicidade, vi pela primeira vez a minha mãe feliz, era real, já não eram aqueles olhos tristes do dia-a-dia, eram olhos de pura poesia. Estava imersa no olhar da minha mãe quando a vi abrir um lindo sorriso. Mas eu não via nada, ela estava sorrindo e olhando para baixo. De repente, quem eu vejo subindo de encontro à minha mãe? Pois é, eu soube naquele instante, pelo tamanho do homem, que era o Capitão. A princípio tenho que confessar que fiquei chateada, afinal era de mim que ele gostava. Como filha, mas gostava. Não estava preparada para ver o que vi, eles abraçaram-se e o homem ali na minha frente beijou a minha mãe. Não que eles soubessem que eu estava lá, mas eu sabia, eu estava vendo. Os dois deram as mãos e foram andando, afastando-se da pedra, eu atrás. Vi quando pararam à frente do alojamento do Capitão. Eu não sabia o que fazer, não sabia se chamava o meu pai, se ia lá e mostrava-me para os dois, o fato é que virei às costas e disse para mim mesma: que sejam felizes, afinal o meu pai não a faz sorrir, nunca se importou com a felicidade da mulher dele. Vivia em bordéis com rameiras de rua, não seria eu que iria tirar a única coisa na vida que a fazia feliz. Na época, eu não sabia bem o que era aquilo que vi nos olhos dos dois. Hoje eu sei, padre, era amor, amor de verdade.Lembrou-se de quantas vezes olhou a mãe sem entendê-la, antes de saber do Capitão.- Como eu dizia, casei-me muito cedo. Durante a viagem para cá, o meu pai fez amizade com um dos que, como nós, estava vindo para o Brasil. Lembro-me que não tinha trazido a família com ele, dizendo que assim que se instalasse mandaria buscá-los. O nome do homem que viria a ser meu sogro era Jacinto. Realmente, depois que se acertou aqui mandou buscar a mulher, D. Inocência, e seus dois filhos, Ambrósio e Francisco. Este último, mais tarde seria o meu marido.Na idade de me casar, o meu pai e seu Jacinto fizeram os acertos para que eu e Francisco ficássemos noivos. Lembro-me perfeitamente desse dia! Eu estava linda, padre, a minha mãe ajudou-me a vestir, mas quem havia costurado o vestido era eu. Era lindo, cor-de-rosa. Eu havia tentado ver de perto o homem que seria meu marido, mas não conseguia, o senhor sabe que mulher não anda sozinha para não ficar com má fama. Precisei esperar para conhecê-lo só no dia do noivado.Quando entrei na sala estavam sentadas as duas famílias, a minha e a dele. Eu não sabia o que fazer, não sabia como era a cara dele. Fiquei ali parada, empacada igual a uma mula, com um sorriso pregado na cara. Acho que não mudaria de lugar nem que alguém me chacoalhasse. Até a Deus eu pedi uma ajudinha, queria que Ele me dissesse: É aquele ali, minha filha. Mas que nada. O meu pai veio na minha direção, segurou a minha mão, colocando-me diante do Francisco, disse: - Minha filha, este é o seu futuro esposo, Francisco. - Pense bem, padre, eu, com dezesseis anos, a olhar aquele homem feito parado na minha frente, muito mais velho do que eu! Olhando para mim como se estivesse apaixonado, daí virou-se para o meu pai e disse: - Seu Manuel o senhor concede-me a mão da sua filha para matrimonio? - Eu não sabia sequer o que era conceder. Rapidamente o meu pai respondeu: - Claro que sim. - Será que ele tinha medo que eu fugisse?Olhando para a sua mão, Felipa observou a marca do anel.- O meu noivo tirou um anel de dentro de uma caixinha, dizendo ter sido da avó, e entregou-me. Marcamos a data do casamento para dali a dois meses.O casamento foi bonito como o meu noivado, só que com muito mais gente. O meu vestido era uma beleza. Eu até gostava do Francisco, ele era bom para mim. Acabada a festa, fomos para a casa que seria nossa, ficava ao lado da padaria, eu contei-lhe que ele era padeiro? Pois era, e dos bons. A minha primeira noite foi como as demais que tive com ele, eu não podia tirar a roupa porque era feio, ele tinha que ajeitar-se em cima de mim com aquele camisolão, eu vestida até ao pescoço. Isto é muito estranho, padre, não consigo entender, podia-se usar menos roupa nessas horas.A reação do padre foi de espanto, já que a maioria das mulheres concordava com aquela atitude de pudor.- Uma semana depois de casada, a minha mãe foi embora sem deixar endereço, nem para mim, nem a ninguém. Eu entendi padre, sabia que o que eles sentiam era amor, amor real não pode ser errado. O meu pai sentiu falta dela só nos primeiros dias, tenho a impressão de que muito mais por não ter agora a mulher que lhe arrumava as coisas - não sentia falta da mulher com quem casou. Acho que esta terra virou para baixo a cabeça do meu pai. Não acho que a minha mãe e o Capitão fizeram algo errado, foram ser felizes, é o que Deus quer, não é?O padre tinha que lhe dizer o que constava na palavra de Deus:- Não é bem assim, Felipa, a sua mãe era uma senhora casada, tinha que respeitar os laços do sagrado matrimônio.Ela retrucou:- E o meu pai, não tinha? Por que é que ele podia fazer o que queria, sair com prostitutas, manter casa para gajas, e a minha mãe não podia ir embora com o homem que amava?O padre continuou:- Quando as pessoas casam-se fazem votos de fidelidade, e devem respeitar-se um ao outro, a mulher deve obediência ao marido. Sei que o seu pai cometeu os erros dele, não o estou a desculpar, mas a sua mãe deveria ter-se mantido fiel ao lado dele. Certos homens têm essa necessidade de procurar coisas fora do casamento, mas isso não significava que não amasse a sua mãe. Pelo contrário, a sua mãe é que amava outro homem, o amor divino é aquele que se tem no casamento.A reposta de Felipa foi dura:- Então quer dizer que, fossem quantas fossem as mulheres com quem o meu pai andasse, a minha mãe deveria ter suportado calada? Padre, nem nome de santa a minha mãe tem, já viu alguma Santa Fulana? Porque esse era o nome dela. A minha mãe é de carne e osso e tem um coração. O senhor, para ser padre, negou a carne, e não entende o que é amar alguém acima de tudo, enfrentando barreiras e preconceitos. O senhor deve saber por que é que eu estou aqui, embora eu só possa supor esse porquê. Jamais condenaria a minha mãe a estar na mesma situação que a minha por um erro do tempo, o homem certo na hora errada. Bem fez ela que foi embora daqui, senão seria bem provável que estivéssemos dividindo a mesma cela.Diante da resposta inflamada, o padre preferiu se calar. Não passaria mais sermão nenhum sobre fidelidade, pois sua conversa com a mulher poderia terminar ali. Porém lhe disse:- Muito bem, vamos continuar a nossa conversa sem nos ater a opiniões, pelo menos às minhas, mas há de prometer-me que isso ficará entre nós.Surpresa, ela perguntou:- A quem é que eu poderia dizer algo contra o senhor?A resposta fez com que se lembrasse de onde estava e o que, em breve, aconteceria:- Aos inquisidores, nos interrogatórios.Felipa entristeceu. Escutaram os ferrolhos da porta que se abria e despediram-se na promessa da volta do padre no dia seguinte.
CAPÍTULO III
No pequeno catre onde estava, a figura de Felipa quase desaparecia, era impossível se acomodar, ficava encolhida em posição fetal. Desse jeito, sentia-se protegida. Lembrava-se dos tantos lugares em que havia visto negros passarem quase que a vida inteira. Locais iguais ou piores que o de seu confinamento.Pensamentos... procurava não tê-los!!!Olhava a seu redor, via a sujeira, os insetos e roedores passeando como se fosse ela a intrusa; não havia nada naquele lugar, nem um simples colchão, dormia encolhida no chão frio coberto de palha seca e agradecia o calor que castigava Salvador nessa época do ano.Suas lembranças eram de momentos soltos, largados, do que havia sido sua vida até o momento de sua prisão.As horas passavam, para ela o tempo não tinha mais importância alguma. Conjeturava: “O que faria se o tempo parasse?” Com dores pelo corpo todo, fazia uma análise distorcida do que lhe vinha à mente.“O tempo!!! O que é o tempo para quem nada tem? Eu vivo de um passado sem futuro, presente não possuo, o ontem já é hoje, tempo!!! Tempo!!! Quanto tempo se passou desde que os homens me destituíram da condição de ser humano? Tempo!!! Jogo de sorte ou azar, vício da vida, sem ti nada seríamos ou faríamos, isto é o que tu és, tempo, todos vivemos escravizados à espera do que pode acontecer enquanto ainda há tempo!!!”.Seus devaneios lhe faziam falar com o nada à espera de uma resposta, talvez questionasse sem motivo algum, como uma alma enlouquecendo com medo do que estava por vir.“Quanto tempo será que me resta? Por que é que ninguém me diz nada e me deixam aqui sem saber o meu fim? O que querem de mim? Enlouquecer-me, só pode ser isso. Só pode ser!”.O sono não chegava, o desconforto fez com que voltasse ao passado, à sua viagem para o Brasil.Comparou o lugar onde agora tentava dormir com o alojamento da caravela. As sensações eram similares, mas os motivos tão diferentes! Um a levava à vida e o outro, provavelmente, à morte.Lembrou-se da primeira vez em que viu a morte de perto naquela embarcação. Os mais fracos que não conseguiram completar a viagem por terem adoecido sem ter como se curarem, sendo levados ao destino que os aguardava, a morte. No Santa Helena foram quatro, e vários outros nas outras naus.Com um arrepio percorrendo o corpo, via nitidamente as cenas dos homens enrolados em tecidos sendo jogados ao mar. Queria esquecer a imagem que lhe vinha à cabeça nesse instante. Fechou os olhos o mais forte que pôde tentando apagar essa marca tão viva que lhe parecia muito mais forte agora.“Tudo que tem vida morre, pessoas, animais, plantas, mas a morte que mais dói é aquela dos sonhos que não chegamos a ver nascer. Meu filho!!! Sonhei tanto com a tua vida, queria ter-te visto nascer, amamentar-te, ver-te crescer, sentir-me mãe, mas nunca vieste ao mundo, foste um sonho morto como o meu sonho de ser mãe. Todos mortos, sonhos mortos, as piores mortes a enfrentar!!!”Pensou em Francisco, na sua simplicidade, teve pena, ele estava velho para enfrentar aquilo, afinal quem estava em idade de sofrer todo esse infortúnio?De repente sua memória retorna, pouco mais, pouco menos, há dez anos atrás.Estava em sua casa, como de costume costurando, quando viu entrar pela porta uma mulher distinta, séria, de poucas palavras, nunca a tinha visto pela cidade. Era realmente diferente, cabelos negros bem penteados amarrados na nuca, a roupa impecável, um andar de pessoa muito educada, com certeza era estudada, nada tinha das portuguesas que moravam por ali.A senhora pediu licença, entrou, perguntou se podia esperar, Felipa concordou imediatamente, ofereceu-lhe assento e atendeu a mulher que certamente poderia ser chamada de dama.A bela senhora se apresentou:- Bom dia, chamo-me Catarina Fernandes!Felipa jamais esqueceria esse nome, bem como a mulher.Tentava lembrar-se da data em que conheceu Catarina, não podia ter-se esquecido, forçou a memória, finalmente lembrou o ano, 1583. Fazia tempo...A mulher perguntou se poderia lhe confeccionar um vestido. E que se aprovasse o corte faria mais alguns, porém a confecção teria que ser rápida, no máximo em um mês.Felipa, cheia de curiosidade, perguntou-lhe:- Não que seja do meu interesse, mas por quê a pressa?Catarina contou-lhe que era casada com um comerciante de pedras preciosas, eram do Recife e que estavam indo embora do Brasil dentro de dois meses. Moravam aqui há quase dez anos, tinham uma situação financeira muito boa, e por isso podiam dar-se ao luxo de fazer essa viagem.Muito confusa Felipa não entendia nada, e na sua simplicidade voltou a perguntar:- Por quê sair desta terra? Não está sendo generosa com vocês? Pelo que me disses, vivem muito bem.A resposta foi como um soco no estômago. Catarina olhou dentro dos olhos da moça e disse:- Somos judeus!Felipa assentiu com a cabeça e procurou não demonstrar nenhuma reação. Lembrou-se dos sermões que os padres faziam, de como acusavam aquele povo de hereges. As piadas contadas nas ruas, o preconceito. Como outros, tinha aprendido a manter-se afastada dos judeus, que o padre dizia serem um povo pagão e demoníaco.Olhava aquela mulher e procurava a maldade que todos falavam... Algo como piedade lhe tocou o coração, gostaria de poder ajudar aquela senhora.Colocou-se à disposição de dona Catarina Fernandes, sem parar para pensar. E se indagava:“Sair daqui para onde? Não seriam sempre perseguidos? Que importava o lugar que fossem?”.E Catarina continuou a explicar a situação para a moça:- Vamos embora do Brasil! Com os inquisidores cá, já não há nenhum lugar seguro.Percebendo que nada mais tiraria da mulher a não ser as medidas, começou o seu trabalho, conferiu a metragem do tecido, escolheram o modelo. Disse-lhe que estaria pronto para a prova dentro de uma semana, e que ela poderia escolher o horário que lhe fosse mais conveniente.Tudo acertado, a mulher despediu-se, agradeceu e desapareceu pela porta.Por conta da maldade alheia, pensou em manter a identidade de Catarina em segredo, afinal era apenas mais uma mulher, como tantas que entravam em sua casa em busca de seu serviço.Uma semana depois, no horário combinado, Catarina entra no quarto de costura de Felipa para a primeira prova do vestido. Ficou perfeito. A senhora mostrou-se muito satisfeita com sua habilidade na arte da confecção. Perguntou a moça se teria condições e tempo para assumir mais quatro peças e lhe entregar no prazo de um mês.Com o desejo firme de poder ajudá-la aceitou sem objeção alguma, mesmo que atrasasse os compromissos já assumidos, inventaria uma desculpa. Naquele dia pouco falaram, apesar das indiretas da costureira.Terminada a prova e os acertos finais, passaram a tratar da confecção dos demais. Tudo combinado, ela voltaria em uma semana para experimentá-los.Curiosa, passou a fazer perguntas a respeito desse povo perseguido para as pessoas em quem confiava, mas todos eram unânimes em afirmar que eram pagãos e deveriam queimar na fogueira da Santa Inquisição.No dia combinado, Catarina apareceu para finalizar o tratado. Sentia o interesse da moça a respeito de sua vida. Depois de tudo feito, a mulher lhe disse:- Sente-se, vamos conversar um pouco.A moça simples, de reações transparentes, arregalou os olhos, mal agüentando a espera do que iria lhe ser dito.- O meu povo veio para cá mais ou menos no ano de 1530. A vida na Europa estava um verdadeiro inferno, conforme deves saber, devido à perseguição que sofremos pelos simpatizantes da Inquisição. Portugal até não nos perseguia tanto e abriu-nos uma porta, um caminho diferente para os que quisessem sair da Europa e procurar vida nova em novas terras. Isso foi como olhar a vida novamente com as esperanças que já não tínhamos nos nossos corações. Desde que aqui chegamos trataram-nos muito bem, pudemos exercer a nossa prática religiosa sem nenhum problema. Construímos duas sinagogas no Recife. Viemos em grande número. Trabalhamos com afinco, fizemos fortuna, vivíamos tranqüilos. Agora os tempos são outros, o nosso dinheiro, conquistado à custa de muito esforço, interessa aos cofres portugueses. Já está a fechar todas as saídas para o meu povo poder sair daqui, querem estabelecer uma Inquisição como na Europa. O medo voltou a assolar-nos, muitos já se foram, é uma viagem complicada, na realidade é uma fuga. Mas, Felipa, peço-te para nada contares sobre isso ou sobre mim, nem ao teu marido.Felipa, de volta à realidade de sua cela, lembrou que a fuga de Catarina tinha lhe dado o primeiro sentimento de revolta contra a Igreja e a tal da Santa Inquisição.Hoje se recordava dessa passagem com uma certa inveja.“... ela, pelo menos, conseguiu fugir das mãos destes carrascos”.Voltando ao passado, perguntou à mulher:- Para onde vão desta vez? Há algum lugar seguro? – e esperava a resposta com uma certa agonia.- Felizmente há, mas, por favor, insisto, não comentes nada com absolutamente ninguém.- Nada irei dizer D. Catarina, podes ficar tranqüila - respondeu.- Já ouviste falar na América do Norte, a de Colombo? – a moça afirmou com a cabeça. – É para lá que iremos, a maioria da população é de cristão-novos e a nossa presença não os incomoda, eles também sofrem a mesma perseguição, a nossa intenção é fixar moradia numa cidade de nome Nova Holanda. Acredito que será muito melhor para nós mantermo-nos afastados dos católicos. Sinto que mais uma vez se está repetindo o caminho dado por Deus a Moisés, vamos no maior número que pudermos. Será mais um êxodo nosso.Ao final do desabafo da mulher, Felipa estava com lágrima nos olhos, pensando em como se podia tratar um povo assim.No dia da despedida, Catarina prometeu mandar notícias e trocaram um longo abraço, como que sabendo que jamais se veriam novamente.Soube depois que muitos judeus haviam sido perseguidos e condenados por aquela intolerância, bem comum aos que comungavam a fé católica.Queria muito saber como ela estava. Durante um tempo trocaram correspondências, mas a pedido da amiga pararam, pois Catarina sentia medo, mesmo não estando mais no Brasil.Pensando na sorte de Catarina Fernandes, conseguiu adormecer.
CAPÍTULO IV
Na manhã seguinte mal tinha vontade de abrir os olhos, muito menos de mudar a posição em que passara a noite. Lembrou-se do padre, que nem cara de homem tinha, mais parecia um menino, e um sorriso escapou de seus lábios. Confiava naquele moço, talvez porque sentisse que fosse o filho que Deus nunca lhe dera, com ele as palavras saiam fácil de sua boca.Com certeza era uma pessoa estudada. Pensou no quanto tinha sido difícil convencer a mãe para que a deixasse aprender um pouco das letras. Sabia que era uma mulher de maneiras simples, afinal não fora educada para ser uma dama, era uma mulher como outra qualquer de sua classe social.Altiva, pensou: “... podia ser simples, mas possuía dignidade e foi atrás dos seus sonhos. Infelizmente, no seu coração sabia que o seu próprio sonho a havia colocado ali”.O carcereiro abriu a portinhola da cela e passou-lhe um pedaço de pão e uma caneca d’água. Lembrou-se da viagem mais uma vez, dos dias em que quase nada tinham para comer, mas haviam sobrevivido. Não seria pela falta de comida que lhe tirariam a vida.Percebeu que não estava mais se sentindo como nos últimos dias, a visita do padre lhe fizera bem. Sentiu avolumar em seu peito uma revolta contra aqueles hipócritas todos vestidos com riqueza, achando que podiam fazer o papel de Deus na terra.Tinha que externar sua raiva, pelo motivo que achava que ali estava. Como se achavam no direito julgá-la? Como? Aqueles homens nunca haviam amado!!!Falou todos os palavrões que conhecia em voz alta:“Hipócritas!!! Filhos da puta, cornudos, fodidos, embusteiros, quem lhes deu o direito de saber o que é de Deus e o que não é. Interesseiros, devem ser todos efeminados e nunca devem ter conhecido o amor de uma mulher, ou se o conheceram e a negaram, são tão impuros como os que estão cá comigo. Por que não se jogam por livre e espontânea vontade no fogo??!!!”Depois da gritaria sentiu-se vingada, ninguém podia fazer-lhe mais mal do que já estavam fazendo, podia falar o que quisesse, conhecia seu final, e se quisesse mandá-los à merda de hoje em diante, mandaria! Sabia que quem cruzava a porta daquela prisão não seria inocentado nunca!“Será que o padre iria visitá-la hoje?”.Nada tirava da sua cabeça que ele era o filho mandado por Deus, para que pudesse estar com ele nesses dias que estavam por vir. Não iria dizer nada ao moço, ele com certeza iria pensar que, além do motivo por que estava sendo acusada, devia estar mesmo possuída por algum demônio ou já estava ficando louca.Lembrou-se de Quitéria e começou a divagar, como se estivesse falando com ela:-Engraçado, eu aqui neste lugarzinho, presa como um bicho. Quantas vezes vi negros em pior situação que eu?Lembras-te daquela surra na minha frente? Senti um ódio, o que aquela velha louca pensava, nem tua mãe ela era para te dar tamanho corretivo, só porque não ouviste ela chamar!!! Acho que foi uma das últimas vezes em que brincamos juntas.Aquela mulher, sim, deveria estar aqui para pagar os pecados da forma como a ti tratava e à tua mãe. Bom, se todos os que fizeram isso com os negros estivessem aqui, teriam que construir Salvador de novo, e com um nome diferente. Aqui não se salva um!Uma vez fui com Francisco visitar um cliente que morava num engenho, daqueles enormes. O homem era dono de um monte de terra, a plantação de cana perdia-se de vista, tinha mais de mil escravos, eu bem que dei graças a Deus por tu e a tua mãe não terem ido parar num lugar daqueles.Quase podia ver a moça ao seu lado enquanto falava.- Entramos no tal pátio perto da casa onde o homem morava com a família, toda a gente empoadinha, parecia até que era dia de missa, eu não estava a prestar atenção àquela coisa enorme que era o pátio não, olhava era para a casa. De repente virei-me ao pátio, e o que eu vi embrulhou-me o estômago, cheguei a vomitar, sabias? Tinha um monte de negros amarrados nuns postes sangrando, acorrentados, e um homem da mesma cor deles, negro, menina, que mandava o chicote nas costas dos pobres coitados.Eu fiquei muito assustada, peguei no braço do Francisco e perguntei-lhe o que era aquilo... Tu podes imaginar o que o babão me respondeu?E imitando a voz do marido, continuou.- Isso é o ensinamento que eles ganham quando tentam fugir daqui, afinal o que é que essa negrada quer? Trabalham, ganham comida e casa de graça, deviam era levantar as mãos para o céu e agradecer pelo que recebem.Não me agüentei. Não! Não mesmo!!!Parou e fez uma pergunta para o nada, ou para a mulher que julgava ver a sua frente.- Tu conheceste o meu marido, era bom, mas o homem não entendia nada de mulheres, deves-te lembrar. Voltando onde eu tinha parado, segurei no braço dele e disse: vai lá, fica no lugar deles, e depois diz-me se isso é ensinamento!Tu conheces-me, menina, sabes que não sou de segurar as palavras que me vêm à boca. E olha que o homem olhou feio para mim, mas eu nunca tive medo dele, dei de ombros.E continuou o seu monólogo, como se alguém ouvisse:- Sabes por que eu acho que não consigo esquecer essas coisas que eu vi? Porque eu estou aqui, e sei que quem vai passar por coisa igual ou pior sou eu, já ouvi um monte de histórias da gente que foi presa por esse tal tribunal, eu tenho a certeza que vou estar na mesma situação que aqueles negros estiveram naquele dia.Com medo do futuro queria que o tempo parasse, mesmo que a deixasse presa ali.- Lembro-me quando anunciaram que iriam aplicar um corretivo num negro fujão, famoso, desses que fugiam para ajudar outros a fugir, diziam até que tinha construído uma caverna e escondia outros negros lá dentro, mas que branco nenhum sabia aonde era a bendita. Não me lembro o nome que eles deram a estes esconderijos, eu não sei o que fui lá fazer, nunca me tinha interessado em ver essas coisas, provavelmente estava a comprar alguma coisa no comércio.Mas neste dia eu parei para ver, céus, como aquele negro apanhou, e o povo gritava - isso mesmo, bate mais, que essa raça de miseráveis merece é isso!Credo lembrei-me até da Bíblia. É, da Bíblia!!! Tu lembras-te das histórias daqueles homens que acreditavam em Jesus e eram atirados a um poço cheio de leões para serem comidos vivos? E toda a gente que estava ali torcendo contra o negro cristão!!! Como a memória é fraca quando convém!!!E como chegavam navios trazendo cada vez mais negros para cá!!!Sabes uma coisa, eu nunca entendi, devia ter mais negros do que brancos cá, explica-me aí, tu que és da raça, por que nunca acabaram com os brancos e tomaram conta desta terra, quer dizer, não precisavam matar todos, podia sobrar gente branca que fosse boa, porque tinha... Uns até ajudavam os escravos a fugir, estes não precisavam morrer, mas esta cambada, esta mesma que me colocou aqui, estes deviam morrer todos!!!Impacientava-se. Olhava para a porta, tentava ouvir algum outro barulho que não fosse de gritos desesperados, e nada do padre.Bateu na porta como se pudesse ser ouvida do outro lado e gritou:- Ei, gajo!!! Gajoo!!!!!!! Aonde estas, carcereiro????? - Pensou: “Se eu começar a insultar ele vai aparecer, nem que seja para me dar umas bofetadas e insultar-me mais do que eu o insultei a ele. O melhor é mesmo eu calar a boca! ”Já que o padre não vinha, continuou a falar com a moça da sua imaginação:- Tu eras tão linda, Quitéria, alta, magrinha, tinhas umas pernas bem feitas, os peitos empinadinhos, e a nádegas... que nádegas!!! Eu lembro-me bem porque nós nadávamos nuas naquele ribeirinho perto daquele convento, eu nunca pensei nisto, mas imagina se as freiras nos tivessem visto as duas lá, que surra iríamos levar.Riu de novo, mas na mesma hora os seus olhos tornaram-se tristes, tapou-os com as mãos como que para apagar a imagem que lhe veio à cabeça.Falava desenfreadamente, coisas sem sentido, o que lhe vinha à mente, parecia que estava se afogando em lembranças. O seu humor alternava da apatia à euforia.- Sabias que o Francisco uma vez comprou um negro? É!!!! Foi lá no cais, no mercado onde vendiam o seu povo. Um dia chegou a casa com um deles. Eu quase caí no chão, não entendia o que ele podia querer com um escravo, a escrava lá era eu.Riu mais uma vez.- Quem trabalhava e sabia muito bem fazer o serviço de casa era eu, e nunca reclamei nada, era o serviço da mulher. Quase tive uma zanga com o homem por causa disso, mais aí ele veio com aquela conversa mole de que precisava de mais alguém na padaria, e contratar um branco ia sair muito caro, estas coisas, o negrinho nunca fez nada de mal não, era até muito educadinho.Numa conversa nossa - é, menina, a gente conversava muito quando ninguém estava por perto - ele contou-me que era príncipe lá da terra de onde ele veio. Príncipe!!! Num acreditei nisso não, acho que foi só para me impressionar, tu já pensaste ter um príncipe a trabalhar em casa, mesmo escravo? Se ainda fosse uma daquelas ricaças, mas eu, Felipa, uma costureira? Até que podia ter sido bom para os negócios do Francisco, era só espalhar que o negro era príncipe e servia na padaria, já imaginaste a curiosidade do povo???Explica-me, como é que pode existir um príncipe negro, mulher?Nunca falei nada disto com ninguém, já pensaste o que ririam da minha cara?O dia foi passando e nada do padre aparecer, dirigiu-se novamente para a pesada porta e começou a gritar de novo:- Gajo!!!!! Boçal! Ei, filho de uma puta!!! Ô gajo, onde está o padre???? Gajooo!!!!! Merda!!!!!!! Será este filho de uma puta é surdo?Lembras-te quem me ensinou a dizer insultos? Lembras? Foste tu, acho que de ouvir a velha...E desatou a rir novamente.- Tinha uns que nem repetir eu repito, acho que já nem me lembro, quem sabe se fizer uma forcinha até me vêm à cabeça de novo, mas tu sabes, se começar a falar estas coisas, além do que já sou acusada, vão-me chamar doida.Aquele dia se foi e o padre não veio. Felipa entristeceu-se, gostava do moço. Mas a conversa com Quitéria tinha sido boa.Acabou por adormecer em meio às lembranças da negrinha.
CAPÍTULO V
Quanto tempo será que estava ali trancafiada? Pouco importava, ainda estava viva, e enquanto estivesse ali, continuaria viva!!!Levantou-se do chão, espreguiçou o corpo cansado e dolorido e pensou no dia que teria de prosa com o padre, seu filhinho. Riu do próprio pensamento.“É, só posso é estar ficando louca, já tou a chamar ao padre filho!!!”A porta da cela é aberta violentamente, Felipa vira-se esperando ver o padre Pedro, mas não era dele a figura que estava ali parada diante dela com um ar de autoridade absoluta.A primeira reação da mulher foi encolher-se no canto da cela. O Bispo passava os olhos por ela desde a sua cabeça até os pés, parecia procurar alguma coisa escondida.Completamente apavorada não sabia o que fazer, queria sumir daquele lugar, ou que aquele homem parasse de olhá-la do jeito que estava fazendo.Lembrava-se de que uma vez a sua mãe tinha dito que o medo era a pior coisa que se podia sentir, porque paralisava como veneno de cobra, e que diante de uma cobra o melhor a fazer é não se mover.Assim ficou imóvel, paralisada, a boca já estava branca tamanha a pressão colocada para que os dentes ficassem travados, sentia o sangue correndo pelo corpo de uma forma que o deixava dormente.“Sim, pensou, estou diante de uma cobra traiçoeira e perigosa.”O bispo pediu ao carcereiro que a trouxesse para mais perto, queria olhá-la.Agarrando os braços de Felipa o homem leva-a, colocando-a diante do bispo no meio da pequena cela.Ele passa a inspecioná-la como a um objeto, medindo, analisando, julgando.Finalmente, pergunta:- Tens algo a dizer-me, pecadora?Felipa continuava imóvel, e mesmo que quisesse dizer alguma coisa não teria condições, estava petrificada de medo.E novamente escuta:- Continuas no teu silêncio, criatura do demônio? Soube que tens falado muito com o padre Pedro, já assumiste a tua culpa? Por acaso tentas seduzir o novato?Em escárnio, o bispo continua:- Ah, esqueci-me que não é por homens que tu te atrais, são as outras criaturas da tua laia que te apetecem.Queria abrir a boca, falar alguma coisa, expressar-se, mas nada, a cobra tinha-lhe picado a alma.- És tão porca quanto os que renegam o nome de Cristo, tão vadia quanto a mais baixa criatura da face da terra, só podes ser uma anomalia feita pelo próprio demônio. Deus irá entregar-te nas nossas mãos, para que a justiça a Ele seja feita! Herege, imunda, tu não passas de uma criatura vil, quantas mulheres levaste para o teu caminho, diz!!! Com quantas vadias tu te deitaste? Seria muito melhor perante Deus que entregasses as outras como tu, sabemos que se encontravam para adorar Satanás e praticar atos imorais. Tu sabes que a pena pode ser abrandada se entregares as outras que compartilham contigo desta imundície. Vais ficar aí calada? – gritou o homem.Depois de segundos, disse:- Bem, Deus é testemunha de que tentei.Virando as costas para sair do cárcere, disse em voz alta:- Saibas que voltarei a ter contigo ainda, resta-te tempo para refletir sobre a tua confissão e denunciar as outras.Felipa continuou paralisada em seu medo, não emitia um som, não movia um músculo, não sentia o tempo passar.Agora tinha a certeza do motivo pelo qual estava ali, ouvira da boca do próprio bispo, ele tinha tirado toda a dúvida que ainda pairava sobre a verdade... Quem? Por quê?Tempo!!! Quanto tempo ainda teria? O que teria que suportar?Tempo!!!!!!Levantando os olhos para o teto do abrigo como se olhasse o céu, começou a gritar para Deus, esperando uma resposta:- Por que não me matas de uma vez? Joga-me no meio de abutres, “urubus”, pois é isto que são abutres, todos de preto com olhos famintos de morte, por quê????? Acaba com a vida que me deste, se é que ma deste mesmo, pois aqui estou eu carregando uma culpa por ter seguido o que aprendi nas Tuas Palavras, estou aqui por amor!!! Qual é a minha culpa? Diz-me! Qual é a minha culpa? Por que me deixaste sentir tudo o que senti, faltei-Te com a verdade? Por acaso não falava com o Senhor sobre o meu tormento? Responde-me de onde estiveres! Porque parece que só Te diriges aqueles hipócritas e doentes para saber detalhes, é isto mesmo, detalhes, bem sabe o Senhor o que devem fazer quando estão sozinhos! Doentes! Abutres!!! Urubus!!!! Mata-me de uma vez, e tira-me deste tormento!!!! Por que me fizeste diferente, porque me fizeste amar e querer sentir-me amada não por homens, eu não sabia o que era amor até que me encontrei diante de alguém como eu, se este era o motivo para condenar-me, por que me fizeste assim?????Não suportando mais a tensão por que passou, larga o seu corpo no chão como um saco de grãos e fica ali, pesada, largada.A sua cabeça ensandecida procura um meio de tirar a sua vida ali mesmo, naquela hora, sabia que aqueles homens eram espertos, nem um pedacinho de madeira deixavam à mão, nada, olhava o chão buscando algo que pudesse usar para dar cabo do seu sofrimento, nada, nem o tecido que lhe envolvia o corpo seria suficientemente maleável para conseguir apertar o seu pescoço, nada. Desistiu e caiu num pranto que levava a nada!!!Nada!!!“Pobre Francisco”.Era a única coisa que lhe vinha à cabeça e repetia sem cessar.“Pobre de ti, não merecias passar por isso. Perdoa-me, já te pedi tantas vezes perdão, peço mais uma vez, perdoa-me. Tu não mereces o que devem estar a fazer contigo aí fora. Culpa minha! Culpa minha!”Tinha o marido como pai ou o irmão que nunca teve, não se recriminava pelo que viveu, mas sim pelo que tinha causado a Francisco.“Pobre de ti, homem!!! Que fosse pelas tuas mãos a minha morte, o meu martírio, não pelas mãos destes hipócritas mais podres do que eu. Se alguém tinha o direito de me amaldiçoar eras tu, não esta corja, e ainda em nome de Deus"!!!!!!“Por que não me mataste enquanto pudeste? Eu contei-te tudo e tu não fizeste nada, por que não me tiraste a vida? Poupaste-me para isto? Não pensaste que serias tão punido quanto eu? Por que te calaste e me deixaste solta, livre como se não te importasse? Querias que eu passasse por isto, pois estás passando comigo, nisso não pensaste!!! Pobre de ti.”.Naquele dia, quando o padre chegou, não quis recebê-lo. Ficou-se martirizando o resto do dia até o sono chegar, mas ele não veio.Não, naquela noite nada lhe vinha à cabeça a não ser o motivo de estar ali. O quanto se afligiu ao saber o que sentia nos braços de outra mulher! Mas foi aquela a única forma pela qual conheceu o verdadeiro amor. Não foi atrás dele, foi o amor que chegou até ela dessa forma, o que poderia ter feito? Negado? Negou por tempos, negou. Fugido. Tentou, mas o que sentia era mais forte do que a força que trazia dentro de si. Não iria culpar-se, não, chega, aprendeu e foi feliz, mais do que poderia supor que jamais seria, não iria negar o que havia feito, não negaria a ninguém nem que isso lhe custasse à vida. Já havia negado demais para muita gente, agora sabia que seria do conhecimento público e não abaixaria a cabeça pela vida que teve.Ali envolta em pensamentos e reflexões decidiu o seu destino.Mesmo que, pelo que tinha ouvido do homem, sentisse um gosto de fel na boca a perturbar-lhe o estômago.
CAPÍTULO VI
O sol castigava Salvador, o calor estava cada vez mais insuportável, as pessoas nas ruas andavam de um lado para outro em seus afazeres diários suando sem distinção de classe social, pois o que iguala os homens na terra são as reações do corpo à natureza que Deus nos deu.Navios negreiros haviam desembarcado naquele dia, a comercialização estava prestes a começar, pessoas vinham de vários cantos do Brasil para o leilão dos escravos, ninguém tinha previsão de quantos dias poderia durar.Felipa ouvia a gritaria dos mercadores, mas já tinha se acostumado com aquilo, era parte da vida de quem morava ali.O porto era local de desembarque dos negros, e hoje Felipa conseguia entender o horror de um ser humano ser vendido ou tratado como bicho, era anormal, doente, e tudo por dinheiro. “O que move essa terra é isso, dinheiro e religião!” - pensou.Tentou comparar a sua situação com a deles.Concluiu que a sua era bem melhor. Tinha passado a sua vida livre e sem preconceitos. Somente hoje, depois do que soubera através do bispo, entendia o que era perseguição, o que era preconceito. Poderia dizer que a similaridade entre os negros e ela estava no fim da jornada. Ambos sabiam que poderiam acabar com a morte, eles por buscarem a vida livre, ela por ter vivido livre.Nada mais do que acontecia na cidade lhe interessava. Não compreendia por que a haviam colocado naquela situação, mas procurava entender, mesmo que nada entendesse.Como de costume recebeu do carcereiro o seu alimento diário, pão e água, olhou mais uma vez com desgosto, estava com fome, não era exatamente o que queria comer. Mas o que podia fazer, era essa a sua paga.Imaginou se o padre apareceria, afinal tinha mandado o homem embora no dia anterior. Sentiu raiva de si mesma, gostava da presença daquele jovem ali. Tinha-o como alguém a quem podia contar a sua vida, não sabia se toda ela, sentia que nas suas conversas estava passando sua vida a limpo, nada tinha que a envergonhasse, não se arrependia de nada mais agora.Paula veio-lhe à cabeça, não poderia acreditar que ela tinha cumprido o que prometera. Seria por medo? Mas quem, além delas duas, sabia?Ouviu passos fora da cela e se recompôs, e o carcereiro berrou que o padre estava lá para vê-la.Gritou Felipa, para que pudesse ouvi-la:- Abra a porta!!!O padre entrou com uma expressão sem graça no rosto, constrangido pela atitude da mulher no dia anterior. Carregava nos braços uma cesta com pães de vários tipos, frutas e um pequeno bolo.- Pediram-me que lhe entregasse isto.Os olhos de Felipa fixaram os do padre de forma indagadora e, surpresa, imaginava quem poderia ter-se lembrado dela a ponto de se preocupar com o seu estado físico.Sem saber o que dizer, perguntou:- Quem mandou me isto, padre?O padre, de olhos baixos, respondeu:- O teu marido.Lágrimas pesadas escorreram pela face de Felipa. Apenas brotavam de seus olhos e deslizavam por seu rosto.- O senhor encontrou-o, padre? Como está ele? O que estão a fazer com ele lá fora? Ele perguntou por mim? Conte-me, padre – suplicava.O padre sentou-se na cadeira pesada.- Estive com ele, sim, minha filha, não por ter pedido, mas por me sentir na obrigação de fazê-lo. Sei do carinho que sente por ele, não podia deixar de saber como ele estava. Fique tranqüila, está tocando a vida, decidiu sair de Salvador, parte em poucos meses, só está a acabar de resolver os problemas da venda da padaria, da casa, estas coisas.O choque de Felipa foi tamanho que ficou sem fala - “Ele vai embora, ó meu Deus, o que eu fiz a esse homem que tem um coração como poucos?” A culpa invadia-lhe a alma, olhou a cesta e nada disse, mas o padre continuou:- Ele pediu-me que lhe entregasse esta cesta, disse que aí tem coisas de que você gosta que deveria estar com saudades de comer. Tiveram que revistar, quase não me deixavam entrar, não é permitido, pedi com muita insistência, acho que os carcereiros já estão a simpatizar comigo, deixaram que eu lha entregasse.Ainda com as lágrimas escorrendo na face como se fosse uma reação natural do corpo, olha o padre como que pedindo perdão e diz:- O que eu fiz a este homem padre... Ele não merecia isto, se a culpa que sinto agora pudesse tirar-me a vida, sentir-me-ia eternamente grata a Deus... O que eu fiz com a vida dele... Por quê??? - a dúvida com relação à Paula lhe veio novamente à cabeça - por que me fizeste passar pelo que estou passar? – mas as suas palavras já não eram dirigidas a Francisco.- Minha filha, ele é um bom homem, apenas deve estar magoado com tudo isso, não é culpa dele – disse o padre, sem entender as últimas palavras de Felipa.- Eu sei que a culpa não é dele, eu sei... sei bem disto... Não era a ele que eu me estava referindo... o senhor entendeu mal.Parada, lembrou que pouco tempo atrás reclamava do que iria comer, de sua fome, agora não sentia fome alguma, apenas olhava para a cesta e sentia o líquido quente verte-lhe na face.Achando melhor que ela pudesse ficar em paz, o padre se dirige à porta, mas Felipa pede que ele fique, queria muito e precisava falar.Ele volta, senta-se novamente, prepara-se para ouvi-la.- Padre, não sei se o senhor vai querer ouvir o que tenho para contar, mesmo porque agora sei porque estou aqui, pois o bispo veio até mim e contou-me. Sei que estou aqui pela minha forma de amar, e sei que se lhe contar talvez não queira mais voltar aqui e vir-me-me, mas não quero e nem posso mentir ao senhor. Chega, preciso desabafar e sentir que posso confiar em alguém, e confio no senhor. Gostaria de saber se está disposto a ouvir.O padre não esperava pelas palavras de Felipa e viu-se diante de uma situação perturbadora. Queria ouvir sua confissão, óbvio que sim, mas se afeiçoara àquela mulher, não sabia se teria condições para ouvir o que já sabia, a verdade lhe seria muito dura, não queria julgá-la, mas como não fazê-lo?Pensa por um tempo e lhe responde:- Sei que, assim como para você será penoso falar, para mim será penoso ouvir, mas estou aqui desde o primeiro dia, disposto a escutar de ti tudo aquilo que te pesa no coração, então que assim seja.Aliviada com a resposta do padre, começa a contar aquilo que jamais havia contado a alguém:- Já disse ao senhor que não amava Francisco como marido, mas sempre aceitei a minha condição de esposa e cumpri todos os votos matrimoniais. Fui uma boa esposa por anos, padre, não queria mudar isso, não. Eu sofria muito por não ter um filho e sabia que não já teria, pouco nos tocávamos fisicamente, o senhor entende o que estou a dizer, padre? Eu sentia-me sozinha, muito sozinha, sentia que era uma meia mulher, afinal fui criada para isto, casar e ser mãe, coisas que acontecem na vida de toda a mulher. Mas o destino preparou-me uma peça, uma peça que eu nem imaginava existir.E continuando a falar, sentiu o tom de confissão.- Eu costurava para muitas mulheres de Salvador, até de outros lugares. Uma tarde eu estava no quartinho de costura a me ocupar do meu trabalho, precisava fazer muitas entregas antes do final da semana. Bateram na porta, o que não era o normal. As minhas clientes iam entrando, sabiam que eu ia estar lá. Estranhando a batida, larguei o que fazia e abri a porta. Lá fora, parada, estava uma mulher muito bonita, dava para ver que tinha posses. Perguntou-me o nome e eu respondi, disse para a mulher entrar, ela passou por mim cheirando a perfume caro, acho que nunca tinha sentido um cheiro tão bom, o senhor sabe que banho não é coisa para todos os dias, mas eu tinha a certeza de que o daquela mulher tinha sido naquele dia.Buscou na lembrança o cheiro, pode senti-lo quase presente naquele lugar imundo.- Fiquei surpresa, claro, eu costurava bem, mas as roupas daquela mulher não eram confeccionadas aqui, não. Aquilo tinha cara de roupa vinda da Europa. Pensava comigo mesma, “o que será que essa dona está a fazer aqui?”, nem podia imaginar, pedi a ela para sentar-se - o meu quartinho era bem arrumadinho, cadeiras, mesinha, parecia bem chique para as mulheres daqui. Ela passou por mim e sentou-se na primeira poltrona que viu. Cada vez eu intrigava-me mais, aquilo era muito estranho para mim. Virei-me para a dona e disse-lhe, educadamente - já disse que educação eu recebi, e boa - em que eu posso servi-la?A feição de Felipa demonstrava que não queria esquecer nenhum detalhe.Ela respondeu-me num tom muito empoado – Soube que você é ótima costureira – eu enchi-me de orgulho, ajeitei-me na cadeira para responder - é o que dizem – e lá veio ela com outra pergunta.- Será que estaria à sua altura fazer uns vestidinhos mais frescos para mim? Os que trago da Europa são quentes demais para o calor de Salvador.Fiquei muito irritada quando chamou às minhas roupas de vestidinhos, não me ia enfezar com a mulher, quem é que ela pensava que era para ir entrando e falando daquela maneira do meu trabalho? Eu só respondi:- Pois não, madame, é só dizer o que deseja, estou aqui para servi-la.Lembrou-se de como a sua vida tinha mudado, e em como tinha sido feliz, não iria arrepender-se pelo que houve!!!A mulher não tinha tecido nenhum nas mãos, perguntei-lhe o que queria que eu fizesse, a mulher olhou-me e disse:- Muitas coisas, a começar por um vestido simples para que eu possa saber se és tão boa quanto dizem.Padre, eu não sou de ficar brava nem de ter raiva dos outros, mas aquela mulher estava-me a deixar irritada.Respondi - às ordens. A madame vai trazer-me o tecido, já tens a metragem, ou prefere que eu meça antes?Ela respondeu:- Prefiro que tire as medidas antes para que eu possa saber o que trazer.- Pois não, respondi, fui pegar na fita de medidas, pedi-lhe para se levantar e lá veio outra pergunta:- Costumas trabalhar sozinha? – se bem que não entendi na hora o que ela quis dizer.- Trabalho sozinha sim senhora!!! - e lá veio mais uma:- Não tem nenhuma assistente?Olhando para ela, eu disse:- Para dizer-lhe a verdade, nem sabia que costureira precisava de assistente.Eu nem havia reparado na mulher, padre, mas na hora em que ela ficou em pé eu vi que estava na frente de uma mulher diferente, parecia não precisar de nada nem de ninguém, não agia feito um homem, mas olhava igual a um. Intimidei-me muito, fiquei parada a olhar para ela, mais alta que eu não muita coisa. Os cabelos vermelhos, lindos, cheios de cachos presos em cima, caíam atrás como uma cascata. Tinha os olhos azuis, um azul da cor do céu, padre, a pele parecia um pêssego, daqueles que de tão caros não dava para comprar sempre. Tinha o corpo arredondado, não era gorda, gorda não!!! Era bem feita de corpo, cheia de curvas.O padre estava ficando numa situação desconfortável, preferiu ouvir como em uma confissão, depois entregaria nas mãos de Deus, e aí seu serviço estaria feito, o resto era com Ele.Continuou a narrativa:- Muito educada perguntei o nome da madame, ela respondeu-me Elise, junto com um sobrenome difícil de repetir. Pedi à madame que ficasse de pé para que pudesse tirar-lhe as medidas, ela levantou-se e eu fui com a fita. Estava eu mais que acostumada a fazer isso, é parte do meu trabalho, mas a mulher deixava-me sem graça. Eu estava a tremer, padre, a tremer ao fazer uma coisa que tinha feito à vida inteira. O senhor sabe como é que se tiram as medidas, padre?O padre, mais que depressa, negou com a cabeça.- A mulher tem que tirar a roupa de cima, porque pode atrapalhar, pede-se para tirar o vestido e ficar com as bragas e a anágua, a madame estava de espartilho, coisa que não via muito nas mulheres daqui, incomoda, num dá para respirar bem, mas faz os seios saltarem para fora, realmente não era comum ver isto em Salvador. Sem vergonha nenhuma, ela tirou o vestido. Há mulheres que para fazer isto é um tormento, tamanha não sentem-se bem. A madame Elise não tinha vergonha não, tirava a roupa, naturalmente, o senhor entende. Até eu, acostumada com isto, fiquei um bocado sem graça. Continuando, peguei na fita e fui medir o busto, depois a cintura, os quadris, as pernas nem precisava muito, mas tirava-se assim mesmo, a altura que ia do ombro até a cintura, da cintura até os quadris, da cintura até ao comprimento, por fim do corpo todo.O padre ouvia tudo, mas este universo feminino era totalmente desconhecido para ele, algumas palavras ficaram sem explicação, não sabia o que significavam. Mas estava atento ao que Felipa discorria.- Sabes, padre, eu toda vida vi mulher como mulher, estava acostumada a ver assim, afinal em anos de costura, vendo mulher de anágua o tempo todo, nunca impressionei-me com nada disso, acho que a princípio nem com Elise, mas ela tinha personalidade, sabia o que queria, e fazia qualquer coisa para conseguir. E posso dizer-te ao senhor que conseguia. Nessa terra bem sabes que não existe tecido bom para fazer um vestido, muito algodão, chita, tem até seda, mas só para quem pode pagar. Acabada de tirar as medidas, disse quantos metros de tecido eu iria precisar, pois já havia me mostrado o traje que ela queria, e ela respondeu-me que traria no outro dia.Parou, tomou um pouco d’água da caneca para molhar a garganta e continuou.- Depois que ela saiu eu corri para padaria e contei tudo ao Francisco, ele disse-me que eu podia ganhar mais dinheiro costurando para essas madames finas, pois eu tentei dizer que ela era diferente, acho que ele não entendeu, na verdade nem eu entendia. Ela era fascinante. E olhe que naquela época eu estava satisfeita com a vida que eu tinha com o meu marido. Mas a vida engana a gente, e como engana!!!Pegou uma fruta de dentro da cesta e passou a degustá-la como se fosse pela primeira vez, parecia uma criança, observou o padre. Conforme ia comendo, ia falando.- Ela voltou no dia seguinte trazendo um tecido muito bonito, de uma cor que combinava com a pele dela, era clarinha, não tão branca como eu. Naquele dia ela passou a falar-me de um jeito diferente, havia alguma coisa na voz dela que parecia tirar-me do chão, e eu não estava entendo nada, padre, nada mesmo!!! Entregou-me o tecido e não se ia embora, começou a conversar sobre a minha vida, a perguntar se eu tinha um bom marido, eu disse que sim, jamais iria dizer que não, perguntou-me em tom muito sério se eu realmente era feliz, eu pensei “por que será que ela me está a perguntar isso?” Respondi que, como em todo casamento, tínhamos os nossos altos e baixos, nada que me fizesse ter alguma mágoa dele guardada no coração.Felipa jogou o caroço da fruta num canto, baixou a voz como que envergonhada e disse.- Perguntou-me quantos filhos eu tinha, e isto entristeceu-me terrivelmente, porque tive que responder que não podia ter os meus próprios filhos. Eu acho, acho não, tenho a certeza, que foi nesta altura que ela olhou dentro da minh’alma, e viu o quanto carente eu estava, sentindo-me sozinha, ela chegou-se perto de mim e abraçou-me, sei lá porquê eu agarrei-me a ela como se fosse minha mãe e chorei, ela acarinhava os meus cabelos e eu chorava como uma menina. Apeguei-me a Elise daquele momento em diante, talvez como a uma irmã que nunca tive. Nunca imaginei... Nunca...O susto dos dois quando o guarda abriu a porta lembrou-os de onde estavam e sobre o que estavam falando.O padre se levantou e disse.- É melhor que tires o que está na cesta, tenho que levá-la comigo, amanhã continuaremos a conversar. Deus te abençoe, minha filha.Felipa tirava os alimentos rapidamente, arrumando-os num lugar onde nenhum inseto ou rato pudesse pegá-los antes que ela visse. Só se deu conta de que o padre tinha ido embora quando acabou de arrumá-los.
CAPÍTULO VII
Chovia torrencialmente na cidade, mas isso não atrapalhou a venda de escravos que estava acontecendo, o mercado não podia parar. Os negros estavam debilitados em decorrência da viagem, e os mercadores sabiam que quanto mais tempo demorasse a venda, menor preço alcançariam.O tempo ruim só fazia o clima ficar cada vez mais abafado, um calor úmido, sufocante, atormentava a vida das pessoas.Dentro da prisão o calor era pior, as paredes grossas, a falta de janelas e de ventilação fazia daquele lugar quase que o próprio inferno. Nem os guardas, sempre impecavelmente vestidos, estavam agüentando, abriam os colarinhos, procuravam abanar-se para aliviar o abafamento do lugar.Felipa sonhava em poder sair e se molhar na água que descia do céu de maneira violenta, queria se sentir limpa, pelo menos em seu corpo.Tinha aproveitado bem as coisas que tinha recebido, pouco restava do conteúdo da cesta que o padre lhe levara.O calor já não a incomodava mais, nada a incomodava mais. Agora que tinha começado a contar para o padre o que estava preso em seu coração todo esse tempo, nada mais tinha importância. Sabia que tinha que falar, não teria nada que a fizesse se livrar daquela situação, ela confiava nele, quem sabe falando não se sentiria melhor?O padre chegou mais cedo que de costume. Felipa estranhou, talvez fosse o tempo que o tivesse feito se apressar.Entrou molhado, e batia na batina como se isso fosse secar sua roupa, foi até à porta, pegou a cadeira e puxou para perto de Felipa. Começou a conversar trivialidades.- Está a chover forte, o calor está insuportável, quase não conseguia chegar cá...Estranhou o comportamento do padre, afobado, coisa que ele nunca tinha demonstrado, será que era a curiosidade, pensou, fosse o que fosse ele estava ali e ela continuaria até o fim!- É, percebi que chove muito mesmo – respondeu. O senhor correu muito para cá chegar? Parece-me um pouco nervoso.O padre, sem graça, respondeu:- É, corri, sim, e cansei-me, por isso estou assim, desculpe.Felipa encolheu os ombros sem que o padre percebesse, mas algo ficou no ar.- Como passou a noite, minha filha?Mais uma vez estranhando a falta de intimidade, respondeu:- Apesar do calor, bem, já comi quase tudo o que tinha na cesta, o senhor agradeceu Francisco por mim?- Sim, claro!- Obrigada, queria continuar a falar, necessito de falar, entende-me?- Entendo-te sim, entendo-te perfeitamente. Continue...Felipa ajeitou-se e continuou onde tinha parado.- A minha amizade com Elise foi crescendo. Apesar de rica ela nunca se importou com isto, passeávamos pelas ruas, fazíamos cestas de comida e íamos comer perto do mar, sempre conversando muito, ela sempre muito compreensiva comigo, acho que entendia a minha carência, apesar de eu perceber que ela também era carente, mesmo com tudo o que possuía. O marido havia morrido num combate com os índios, ela fazia o que tinha que fazer, sozinha com um administrador, era sabida como um homem para os negócios, ninguém passava Elise para trás não, possuía tino para fazer essas coisas. A nossa amizade era especial, na verdade nunca tinha tido uma amiga de verdade.Evitando o olhar do padre, continuou.- Francisco sabia que éramos amigas e que eu passava o meu tempo de folga com ela, nunca se incomodou com o fato, pelo contrário, incentivava a nossa amizade, dizia-me que ela fazia-me bem, que já não pensava tanto no filho que não podia ter, nem lamuriava-me com ele sobre isso. Mas um dia... - Felipa parou no meio do pensamento como que recordando o dia – um dia ela convidou-me para almoçar na casa dela, como de costume eu fui, cheguei mais cedo, não tinha nada a fazer mesmo e passar o tempo com ela era muito agradável. Bati à porta, a escrava da casa pediu-me para entrar, entrei e a moça pediu-me para esperar que ia avisar que eu já havia chegado. Voltou e disse para eu subir, que ela não se estava sentindo muito bem. Eu preocupei-me, sempre preocupava-me com a saúde dela, comia pouco, e dizia que não queria parecer uma matrona, mas toda a gente precisa de comer, e ela comia como um passarinho. A rapariga acompanhou-me até ao quarto, abriu a porta para eu entrar, fui entrando já zangada e dizendo que devia ser falta de comida, quando olhei para a cama, ela lá estava quase nua. Virei os olhos o mais rápido que pude. Foi um choque para mim, ao mesmo tempo sentia um calor subir-me ao rosto, o coração bater mais forte.Felipa não conseguia mais olhar o padre, cada vez abaixava mais a cabeça para poder continuar.Ela disse-me – que foi? - Eu disse - põe a roupa mulher, estás quase nua!!! Ela respondeu-me - é o calor, acho que me deu moleza. Como eu queria voltar os olhos para vê-la! Na posição em que eu estava só vislumbrava o lençol de seda na cama, era branco - ela parecia-me uma princesa, tão linda no meio daquela cama, seminua – montes de almofadas apoiavam o seu corpo. Chamou-me de novo e disse: - Vem cá, senta aqui - eu resistindo ao que parecia ser mais forte que eu dizia - não!Olhou sem graça para o homem ali sentado, ouvindo tudo que tinha de mais íntimo em seu coração.- Queres que eu pare?- Não, falas que te fará bem.E voltando para dentro dos seus pensamentos mais íntimos, continuou:- Ela chamou-me novamente, não resisti, sentei-me à beirada da cama e tentei manter-me o mais afastada possível. Ela sabia sempre conseguir o que queria, tinha uma maneira a pedir as coisas que era impossível negar. Quase caí da cama algumas vezes, até que ela segurou na minha mão e disse – dói aqui – mostrando-me o pescoço, e pediu – faz-me uma massagem, quem sabe a dor passa e já descemos. Eu concordei, mas para fazer a tal massagem tinha que me chegar perto dela, e a minha respiração já não estava normal. Pensei “isso que ela está sentindo deve ser contagioso, já estou doente como ela”, e fui-me sentar mais para o meio da cama enquanto ela virava-se de costas para eu poder massajar-lhe o seu pescoço.O cheiro dela embriagava-me. Ela deu-me um vidrinho com um óleo cheiroso e pediu-me para usá-lo. Molhei as mãos e comecei a espalhar o óleo no pescoço de Lise - pois é... depois eu comecei a chamá-la assim. Fui fazendo o que eu sabia, afinal eu não entendia nada daquilo. Sabia que o que estava a fazer não era massagem, eu já nem sabia o que era. Era mais que carinho, sentia cada pedaço do meu corpo querendo tocar-lhe a pele. Foi ai que ela virou-se para mim e me disse “eu sabia, sabia que ias acabar amando-me como eu te amo” - e beijou-me.Não posso descrever-te o que senti, porque era a primeira vez na minha vida que de fato me sentia mulher, completa, sem vazios, entreguei-me aquele beijo completamente, como se nada além de nós duas existisse no mundo, perdi a noção de tudo, estava pela primeira vez na vida apaixonada e era por uma mulher, exatamente como eu. Nada havia sido tão lindo e tão intenso quanto aquele momento que passei com Lise. Nós amamo-nos, como jamais havia amado e entregue a alguém, sentia que ela também estava entregue àquele sentimento por inteiro.Visivelmente chocado, o padre queria negar o que tinha ouvido, não queria acreditar que fosse verdade, mesmo que já soubesse, não!!! Ela tinha que dizer que aquilo não tinha acontecido. Se não, tudo o que diziam daquela criatura tão frágil seria verdade. Queria sair dali, não olhá-la com repulsa, mas havia se comprometido, havia dito que a ouviria, não!!! Mas sabia que ela iria continuar, e teria que ouvir mais e mais. Quanto tempo agüentaria?? Sua vontade era sacudir Felipa e fazer com que dissesse que era mentira, que aquilo era uma peça que ela estava pregando a ele. Ouviu que ela estava falando outra vez, e tentou ater sua atenção ao que dizia.- Depois daquele dia tornamo-nos amantes e amigas. Não pense que foi-me fácil admitir que a amava mais que tudo na minha vida, a culpa assolava-me a todo instante, por mais que ela dissesse-me para não pensar em nós como uma relação errada, eu não conseguia. Passei a não dormir direito, mal comia, atormentava-me, mas pensava em estar com Lise o dia todo, costurava pensando nela, tudo o que fazia os meus pensamentos estavam voltados para ela.Foi quando resolvi conversar com Francisco, dizer-lhe o que estava a acontecer. Eu tinha a minha consciência, sabia que aquilo não era correto, necessitava abrir o meu coração. Um dia estávamos a almoçar e, como quem nada quer, disse-lhe – Sabes a Lise? – ele virou-se surpreso e disse – Claro que sei, vocês dão-se tão bem, isso deixa-me feliz. - Eu continuei – Acho que a gente se dá bem demais. - Ele nem demonstrou nada, sentimento nenhum, foi como se eu dissesse vai chover, mas eu continuei – Presta atenção!!! Eu acho que temos mais que uma amizade! - Ele olhou para mim e perguntou – Como assim, Felipa? O que poderia haver mais que uma amizade? - Respondi de uma só vez – Estamos apaixonadas, eu por ela e ela por mim.Eu penso até hoje se ele entendeu, pois não disse uma palavra e continuou a comer. Fiquei à espera de uma reação, qualquer uma, mas nada. Ele agiu como se eu nada tivesse dito, continuei a encontrar-me com Lise da mesma forma e com a aprovação dele. Queria que o senhor me entendesse, eu tinha contado ao meu marido e ele não recriminou-me, não bateu-me, não humilhou-me, não me pôs na rua, tratava-me da mesma forma, não só a mim como à Lise também, ele tratava-nos da mesma forma, o que o senhor queria que eu pensasse? Nunca entendi. E não entendo até hoje, mas passei a aceitar como ele aceitou. Se ele não me culpava, padre, quem poderia culpar-me, ele era o meu marido e aceitou!!!Pela primeira vez o padre lhe fez uma pergunta a esse respeito.- Há quanto tempo foi isso, minha filha? - O “minha filha” foi muito difícil de dizer, mas tinha que continuar a ouvi-la.- Foi há seis anos, padre.- Sei... E onde é que ela está?A pergunta deixou-a confusa, e disse:- Não sei por onde anda. Foi embora daqui há quatro anos.- E nunca mais a viu?Irritada com o tom de interrogatório, responde:- Nunca, e mesmo que soubesse onde ela está jamais falaria, como sei que ela jamais falaria algo a meu respeito. Estou abrindo-me com o senhor por necessidade, até de colocar todas as minhas dores cá fora antes que o pior aconteça comigo. Entendeu padre?Percebendo que havia ido além do que devia ele ficou quieto e acabou se desculpando pela insistência.- Eu disse-te que não vim julgá-la, e cá estou para ouvi-la - tentou convencê-la.- Bem, obrigada por pensar assim, já fui mais recriminada do que poderia suportar, e sei que esta história ainda não acabou.Pensando no que ainda estava por vir perdeu a vontade de continuar a conversa, queria imergir nos seus próprios pensamentos, e sozinha.- Por favor, se o senhor não se incomodar, poderíamos continuar a conversar amanhã? Eu tive um dia cheio de lembranças e gostaria de estar sozinha.- Não tem problema, filha, amanhã eu aqui estarei e, com certeza, você estará mais tranqüila. Entendo que queira ficar só.Levantou-se da cadeira, bateu na pesada porta, chamou o carcereiro, entregou-lhe a cadeira e saiu.
CAPÍTULO VIII
Fora da prisão, Pedro pensava em tudo o que Felipa havia lhe contado desde o momento em que entrou em seu catre pela primeira vez.Sabia, antes de conhecê-la, de tudo que estava sendo acusada, mas conforme a conhecia negava-se a crer que fosse verdade. Ainda podia ver aquela mulher sensível, meiga, um tanto ou quanto infantil, mas transparente. Não imaginava de sua boca saindo uma mentira. Agora sabia, nem que o chocasse ela faria isso.Foi andando lentamente até chegar à Igreja onde auxiliava outro padre, visto que havia chegado há pouco do seminário.Entrou no refeitório ainda vazio, estava esgotado tanto física como emocionalmente, queria apagar Felipa de sua cabeça e tudo o que ela havia lhe contado.Parado com a cabeça entre as mãos, não percebeu a entrada de dois homens, o bispo e mais um que não era de ordem alguma, era apenas um homem. Levantou a cabeça, foi até o bispo, beijou-lhe o anel, cumprimentou o outro homem e ia se retirando quando escutou a voz do seu superior:- Padre Pedro, poderia dar-nos um minuto da vossa atenção?Apanhado de surpresa, porém admirado pela deferência, voltou-se e disse:- Claro, Eminência! Estou à vossa disposição.- Poderíamos sentar-nos?- Claro! Claro! Onde deseja sentar-se, Eminência?- Pode ser aqui mesmo, estamos a sós por enquanto, se por acaso alguém adentrar iremos para outro lugar.- Sim, senhor! Estou aqui para atendê-lo, podes falar – disse, olhando para o homem que acompanhava o bispo.- Como anda aquela herege que tens ouvido?- Está melhor, Eminência, já se pode ver que está mais animada.- Não sejas inocente padre, estou a perguntar se a mulher já fala alguma coisa, pouco me importa se ela está melhor ou não, o fim será o mesmo, com ânimo ou sem ânimo. Ela tem contado-te algo que confirme as denúncias?O padre não sabia o que dizer, ainda bem que estava sentado – pensou - será que trairia Felipa? Mas traí-la do quê? Da verdade que estava à sua frente? De toda aquela podridão que lhe havia contado? Não a desprezava, mas desprezava o que tinha feito, com certeza se não tivesse sido impedida por alguém continuaria a fazê-lo.Mesmo assim não sabia o que dizer. Precisava de tempo para que pudesse pensar, a pressão por enquanto estava branda, sabia que em certo momento aumentaria a ponto de colocar o seu sacerdócio em risco.- Eminência tenho feito o possível para que se abra comigo, ela realmente tem-me dito coisas a respeito da vida dela, dos seus pais, do seu casamento, mas não denunciou ninguém. Não até agora.- Então, de agora em diante, a sua missão será a de retirar a verdade e conseguir que denuncie as companheiras daquela filha do diabo - e olhando Pedro com o olhar que Felipa definira tão bem como “de abutres” riu, olhou para o homem ao seu lado e disse-lhe – Quero que aquela praticante do roçadinho abra a boca! Isto não é um pedido, padre, é uma ordem!Apesar de chocado com o palavreado do bispo, respondeu:- Sim, Eminência.- Assim que achar necessário voltaremos a conversar.Assumindo uma atitude pomposa, olhou-o demonstrando todo o poder a ele conferido:- Pode-se retirar. Logo terás notícias minhas.Pedro dirigiu-se aos seus aposentos, muito parecidos com os de Felipa, sem conforto nenhum a não ser a cama, o colchão de palha, uma mesinha ao lado com um lampião e a sua bíblia.Olhando para aquele ambiente, pensava no que acabara de ouvir, não podia deixar de sentir uma certa antipatia pelo bispo e pelo seu companheiro. Como havia maldade na maneira com que falavam!!! Sabia que a sua posição era delicada demais, Felipa já falava, confessando-se a si mesma, e a Elise, se bem que nada podia fazer contra a outra, nada tinha de concreto.Pensou em quantas vezes quis ser um inquisidor, fazer parte daquela limpeza contra os pagãos, hereges e outros tantos que desonravam o nome de Deus e da Santa Madre Igreja. Será que conseguiria ser tão vil com Felipa, o que iria acontecer-lhe já estava decidido, nada que fizesse podia mudar o seu destino.O que queriam mais que ele fizesse àquela mulher? Que aflições esperavam que ela pudesse suportar? Até quando poderia manter em segredo aquilo que sabia?Ajoelhou-se e orou:“Deus, que atitude hei de tomar perante a vossa Igreja, poderei negar o que sei? Hoje, depois de conhecer aquela mulher, seria justo traí-la de forma tão baixa? Meu Pai que estais no céu, orientai-me, pois mesmo conhecendo a vossa palavra e sabendo da luta que travamos contra aqueles que querem manchar o Vosso nome, sentir-me-ei traidor e sem caráter se contar o que Felipa me disse em confissão. Não teria ela esse último privilégio, poder confessar-se e arrepender-se? Pois eu sei, Meu Pai, que no fim ela se arrependerá de ter pecado contra Ti”.Continuou um bom tempo nessa mesma posição orando e pedindo a Deus orientação.Na prisão reinava o silêncio absoluto, nada se movia a não ser os insetos e animais peçonhentos. Os guardas dormiam, mesmo que a ordem fosse para que ficassem alertas durante a vigília.As celas estavam todas cheias, a maior parte dos prisioneiros dormia ou estava em silêncio.Numa delas, porém, uma das mulheres encarceradas - e eram muito poucas as que ali estavam - fazia a vigília pelos guardas.Lembrava-se da conversa com o padre. Muito mais de Elise do que da conversa em si.Ainda podia sentir o seu cheiro, a maciez da sua pele, ouvir a sua risada limpa, vê-la movendo-se pelos lugares onde foram. Podia sentir o toque suave em seu corpo, lembrar o amor que juntas viram nascer, mas não morrer. Evitava pensar em Lise, sempre evitou nesses quatro anos passados. O amor que sentiu por aquela mulher não seria nunca igualado a nada que sentira depois dela.Foi nos seus braços que descobriu o que era amor, preencheu os vazios, acalmou o seu coração. Sabia que Lise a tirara de um estado depressivo e apático em relação à vida, ela ensinou-lhe que a vida só seria vivida através do amor.Que importava se fosse por uma mulher ou por um homem, o que mantinha as pessoas vivas era a capacidade de amar, Lise sabia disso. Quantas vezes teve vontade de ir ao seu encontro e começar tudo outra vez.Sabia que sua partida tinha sido por vontade própria, não havia lhe pedido para acompanhá-la? Mas não podia abandonar seu casamento.Pensava que teria sido muito melhor o escândalo na época do que ter exposto todos aqueles que a amavam hoje.Como pôde ter sido tão egoísta com Lise? Com o que havia entre elas? Acabou fazendo a mesma coisa com o marido, arrasou com a vida daquele pobre infeliz.Vil criatura, estragastes vidas, muitas vidas, inclusive a tua!!!Mudando completamente a direção dos seus pensamentos, lembrou-se do padre e de tudo o que lhe havia contado.Sabia que havia destruído a imagem que tinha criado dela, mas não mentiria, já havia mentido por muito tempo, com o que lhe restava de vida não valia a pena mais mentiras.Será que a desprezaria por ser quem era? Será que voltaria e a trataria com a mesma consideração que antes?Seria uma desilusão, tamanha a afeição que tinha pelo moço.Pensou:“Será que o que eu vivi é tão abominável assim? Não feri ninguém... Feri, sim, será que não enxergas a verdade à tua frente? Feri Francisco, feri os meus pais, feri os meus amigos, feri a Lise, e agora feri o padre."Cega!!! - dizia a si mesma – tu, além de egoísta és cega, Felipa, só te viste a ti, a mais ninguém...Contradizia-se no mesmo instante.Não!!! cega não, tu só procuraste ser amada e amar, isso não faz de mim uma criminosa, errei, sei que errei com muita gente, mas não comigo.Merda!!!!! - gritava.Eu só queria ser feliz!!!Que erro existe em ser feliz???Não segui nenhum padrão moral, isso não seria um problema meu?Quantas mulheres faziam o que ela mesma fez e não estavam ali pagando pelos seus atos?Seria ela quem iria carregar e sofrer o que as outras escondiam, ou mesmo mentiam?Paula!!! Tu sim és má, e onde estás agora?Escondida?Não!!!Impossível, se foste tu quem colocou-me cá , algo te aconteceu? Não a deixariam livre? Fizeste o mesmo que eu, se contaste o nosso caso e disseste o que fez, eu não estava sozinha, não fiz nada sozinha e bem sabes disso. Quem poderia dizer que tu me ensinaste coisas que, com todo amor que ainda sinto por Lise, desconhecia. Tu, sim, eras uma devassa, imoral, sem contar que o fazias em segredo... Puta de verdade!!! Não a amaria jamais!!! Foi esta a tua vingança? E eu não acreditei em ti...E se dissesse alguma coisa contra ti? Foste tu quem me procurou!!!Tu foste minha amante e carrasco... Devo a minha morte às tuas mãos!!!
CAPÍTULO IX
A noite ia alta e Felipa não conseguia dormir. Talvez, como ela, muitos estivessem na mesma situação.Não distinguia realidade passada da ilusão, verdade presente do pesadelo. Foi ajeitando-se aos poucos, mudando os membros de lugar, procurando sentar-se e abrir os olhos, mesmo que nada enxergasse devido à falta de lua no céu.Sua alma estava tão escura quanto a noite. Não parava de pensar desconexamente nas pessoas que fizeram parte da sua vida.Não se arrependia de nada que havia vivido, tudo que fez nos anos em que estava livre foi feito de maneira intensa e prazerosa. Tinha sido uma boa filha, sabia disso, amou seus pais e foi amada, viveu cada momento com eles de maneira a ter boas lembranças, sabia que eles não tinham sido felizes, mas isso era entre eles, com ela nunca foi demonstrado ou falado do desamor que sentiam um pelo outro.Percebia que os dois não tinham nada em comum, mas isso não era coisa para uma filha se intrometer.Deu graças por seu pai não estar vivo e por sua mãe estar longe de Salvador. Não queria que sofressem pela peça que sua vida havia lhe pregado.Achava que eles mereciam um pedido de perdão, afinal não tinha sido para isso que a criaram.Ajoelhou-se e começou um solitário diálogo, primeiro com o pai:- Pai perdoa-me por estar cá onde estou, a culpa não é tua, o senhor criou-me direitinho, quem me colocou aqui fui eu mesma, se bem que tive ajuda de fora. Eu sei que as coisas com a minha mãe não eram lá estas coisas, que faltava amor, eu nunca entendi o por quê da sua parte, a minha mãe foi uma das mulheres mais bonitas que eu já vi. E olhe, eu sei dizer se uma mulher é bonita, afinal costurei para tantas que até as conta perdi. Nunca entendi o que aquelas mulheres da rua possuíam que não achavas em minha mãe.Reflexiva, continua a falar:- Quem sabe se hoje sou mais capaz de compreender-te? Acho que o senhor queria mais do que ela podia oferecer-te, acho que posso entender, entendo, foi parecido com o meu casamento, o senhor escolheu-me um bom homem, velho demais para mim, é verdade, porém mais ninguém teria um coração tão bom como o dele.Sorriu de maneira compreensiva.- Eu lembro-me que, quando criança, não havia muito carinho entre nós. Eu sabia, sentia que o senhor amava-me, pela maneira como olhavas para mim, sempre orgulhoso das minhas perguntas, curiosidades, até das traquinices, eu podia ver nos teus olhos que se orgulhava por eu ser tua filha. Talvez não sentisses orgulho hoje, é por isso que cá estou a pedir perdão, o senhor pode-me entender, errou muito na vida perante os olhos de Deus, porque é isso que dizem hoje de tudo o que o senhor fez por aqui. É, acho que poderia compreender-me, afinal o senhor dizia sempre que errar fazia parte da natureza do homem, e eu pergunto-lhe: a mulher também não erra? Será que quando Deus escreveu na Bíblia “homem”, não podia junto ter escrito “mulher”?Dando de ombros, falou:- Não me arrependo do que fiz e de quem eu sou, mas estou a pedir perdão, na minha cabeça, um pai perdoa sempre, mais ainda bem que o senhor não estás aqui para sofrer com nada disto. Deus levou-o antes de passar por este vexame. Eu agradeço também a Ele. Sinto-me perdoada pelo senhor, pai. Fico mais tranqüila com isso. Obrigada pela compreensão. Amo-te, obrigada por me ter amado!Pensou no que iria dizer à mãe, afinal ela ainda estava viva, mas pediria-lhe perdão da mesma forma, talvez mais que ninguém a mãe saberia o porquê de todo o seu sofrimento.Não se ajoelhou, isso era para os mortos, não era o caso agora. Sentou-se no chão como de costume e começou a falar, querendo que a mãe a pudesse ouvir:- Pois, mãe, a senhora hoje é feliz ao lado do homem que amaste durante tanto tempo sem que ninguém viesse a saber. Já que estamos a conversar sem que ninguém esteja com as orelhas em pé, preciso de lhe contar que uma vez, muito antes de vocês irem embora daqui, eu segui-te. Pela primeira vez na vida vi o que era amor, porque olhei nos teus olhos e nunca mais esqueci o que vi. Refletia para todo o lado como um raio de sol, até eu senti como era calma e profunda a forma como olhou para o Capitão. Quero dizer-lhe que apoiei o teu amor, foi naquele mesmo dia que quis sentir-me da mesma maneira. Perdoe-me se invadi a tua vida.Disse isso com os olhos suplicantes.- É por essas e outras coisas que eu precisava de conversar com a senhora. Lembra-te da tua vida com o pai? Eu também sabia que não eram felizes, mesmo que achasse, ou melhor, tivesse a certeza que a mim amavam. Faltava alguma coisa entre vocês, pois é, lembra-te do meu marido? Ele foi sempre bom comigo, acho até que gostou muito de mim, mas 20 anos, mãe, é muita diferença, eu estava com 29 anos e iam-se 13 anos de casada, ele com 59anos. Não que ele não cumprisse com os deveres de marido, mas não era, ou melhor, nunca havia sido o que eu achava que seria, e olhe que às vezes para ele me procurar novamente levava meses, eu sentia falta, mãe, queria sentir-me amada de todas as formas, o meu corpo pedia, nunca disse isto a ele, não podia dizer que queria mais sexo do que ele me podia dar.Ele foi se afastando cada vez mais, porque percebeu que eu sentia muita falta do que me tocassem o corpo, até que não me procurava mais. Como um filho fez-me falta, mãe... Ainda não entendo porque é que Deus amaldiçoou-me desta maneira, hoje eu penso que não era para acontecer, mas como me dói até hoje a falta de um filho, chorei noites e noites, o coitado do Francisco consolou-me tanto!Mais uma vez perdeu-se em lembranças.- Se eu estou aqui, estou porque amei, amei uma única vez, as outras vezes eu sabia que não era amor. Infelizmente sofri, queria poder ter ficado com aquela que amei a vida inteira quando soube o que era esse sentimento, mas a vida faz-nos de bestas, e a gente não entende. O que eu quero que entendas, é que por amor as pessoas cometem loucuras, a tua deu certo, a minha não, mas não me arrependo não, mãe!!! Nunca me arrependi, pelo menos procurei como tu a minha felicidade, e nunca escondi do Francisco não, ele sabia e nunca fez nada, nem me repudiou, só passamos a dormir em quartos separados, afinal, coitado, devia ser duro para ele saber. Senti carinho da parte dele, e muito. Mas não era o tipo de amor que eu queria sentir, eu acho que se sou assim, foi porque Deus fez-me assim, e agora estes urubus querem fazer-me sentir que eu estava errada, e eu não estava, sei que não estava. Amar não é pecado, está até na Bíblia isso, como é? “Ame ao próximo como a ti mesmo”. Que é que eu posso fazer se os meus próximos não eram quem as pessoas queriam que fossem?Como que se desculpando, disse:- Falei demais, mas eu necessitava de dizer o que eu disse, sei que a senhora entende-me, porque amou e aos olhos dos outros também errou. Afinal, como o meu pai sempre dizia, o homem erra, no nosso caso foi a mulher. Mas ainda acho que Deus disse isso tanto para o homem como para a mulher, mas os abutres fedorentos que me jogaram aqui dizem que não, que a mulher é filha do demo. Não!!! Eu acho que lhes faz falta a eles é fornicar uma dessas filhas aí e saber o que podem sentir, e quem sabe Deus até pode fazer com que amem uma delas.Parou e disse para si mesma:- Agora chega, hoje o meu dia não foi fácil, falei com o padre coisas que nem sei se ele estava preparado para ouvir, fiz o que meu coração me mandava, e precisava de pedir perdão à senhora e ao meu pai.Mais uma vez fala com a mãe como se estivesse presente:- Perdoe-me e entenda-me, só peço isso à senhora, porque também enfrentaste o mundo por conta de querer ser feliz, e sei que hoje é. Se servir para alguma coisa perante Deus, rezes para mim, vou precisar de muita oração, já que os que aqui rezam pelos outros amaldiçoam-me. Obrigada, mãe, por me ter feito como eu sou e fui, mais uma vez perdoe se achar que eu errei. Amo a senhora, aprendi muito da vida com a tua vida.Entregue ao cansaço de ter aberto a alma de maneira tão crua para os pais, sentiu que podia descansar.Aquele dia dormiu aliviada, como se tivesse tirado uma das cargas de suas costas, apesar do peso que lhe fizeram sentir.
CAPÍTULO X
Os dias iam passando e a agonia de Felipa crescia. Sabia que as coisas não iriam continuar como estavam, fazia meses que estava presa, nada acontecia, os interrogatórios não aconteciam, podia sentir uma apreensão no ar, o medo aumentava a cada minuto que corria, não sabia a intenção que aqueles “abutres” tinham com relação à sua vida. Seu pressentimento não era bom, isso tinha certeza, já ouvira as histórias da Inquisição, as mortes na fogueira, as torturas. Por que com ela as coisas não aconteciam de uma vez? A angústia da espera era pior do que o fim.“Sei o que querem de mim, isso já tinha sido deixado claro na visita que recebera do bispo. Delação!!!"Isso jamais faria se entregasse alguém sua pena poderia ser abrandada, mas não sabia qual seria sua pena. Se ao menos eles jogassem aberto e dissessem de uma vez o que aconteceria seria mais fácil.Dormira com ódio de Paula, talvez valesse a pena entregá-la, ou quem sabe implicá-la em seu caso.Não! Não era essa sua índole. Jamais colocaria a culpa em alguém por ser quem era, ninguém deveria pagar pela opção de amar uma mulher.“Aumentam os meus medos, sonhos que viraram pesadelos, sinto que a cada minuto o terror se apossa da minh’alma, os dias passam, os pesadelos não tem hora, são contínuos, não preciso mais de cerrar os meus olhos. O meu choro já não é de lamento, mas parte do meu corpo. Afluem lágrimas que se eu bem quisesse poderia bebê-las e matar parte da minha sede.Mas sede de quê? Que tipo de sede as lágrimas saciariam?Tempo!!! Espaço invisível que agoniza os meus dias.Tudo o que se passa neste momento é tudo o meu passado e nada o meu presente.Perco-me na pessoa que sou, não me encontro naquela que fui.Não mais possuo desejos, nem carnais nem espirituais, o que ainda mantém a minha mente sã é saber que vou expurgar o meu passado através do meu desabafo, e com isso espero encontrar o mínimo de paz para o que me aguarda”.Felipa espera seu encontro com padre Pedro, ansiosa para falar tudo de uma vez, tirar e o fardo pesado e muito maior do que poderia suportar.Mais uma vez ouve a porta se abrindo, a figura do padre demonstra uma preocupação aparente demais.Em sua ansiedade, Felipa o questiona:- O que aconteceu? Por que estás assim como quem viu o próprio inferno?Não sabia o que dizer, a resposta estava travada em sua garganta. Contaria a ela? Poderia suportar o que ela pensaria dele? Como não falar se ela havia sido tão honesta, não usando de subterfúgio algum para se expor como fez?- Problemas, Felipa – poucas vezes a chamara assim.- Diga padre, sei que nada posso fazer, quem sabe se, como eu, sentes necessidade de apenas falar.- Gostaria que fosse tão simples. Gostaria muito.- Nada é simples, veja a minha situação, pensas por acaso que está sendo simples expor a minha vida, assumindo ser julgada e sofrer o preconceito até da tua parte? Não!!! Nada é tão simples.Pedro pensava se talvez não fosse melhor falar como ela, abertamente, sobre o que estava acontecendo.- Ontem fui muito pressionado pelo Bispo - calou-se à espera da reação da Felipa.Ela dá um meio sorriso, como se já tivesse previsto, e responde:- Pedro – pela primeira vez tratando-o como um homem, que passava pela angústia de ser colocado sob pressão – realmente pensavas que isso não iria acontecer? Desde que cá estou esta é a única coisa que me mantém viva por aqueles hipócritas. Esperam que eu denuncie pessoas, que entregue os nomes das minhas “amantes”. Espanta-me terem esperado tanto tempo para que o pressionarem.A resposta de Felipa surpreende padre Pedro, que a olha com se a visse pela primeira vez.- Por que razão, se sabias de tudo isso, abriu-te comigo, falou do teu passado como se pudesse confiar que eu não me mancomunaria com os Bispos e os inquisidores?- Sinceramente, não sei, apenas confiei no meu julgamento, se o que falei me pudesse incriminar mais do que já fui, talvez poderia estar preocupada. Nada do que disse já não foi dito, claro que nada a respeito da minha família, mas eles nada têm com a minha prisão.A confusão saltava-lhe aos olhos, a expressão de Pedro era de uma perplexa felicidade.- E agora, Felipa, que queres que eu faça?- Nada, vou-lhe dizer tudo o que tenho para falar, apenas omitirei sobrenomes, dessa forma farei do senhor o meu confessor, e poderás entregar tudo o que eu disser nas mãos imundas daqueles que só procuram limpar-se através dos erros alheios, que nada tem com o que Deus quer, mas sim com o que o Papa, e seus “coroinhas” o fazem querer. Gostaria que a partir de hoje o senhor tomasse notas do que irei dizer, não ficarás em maus lençóis perante o Bispo e a sua corja. Peça ao carcereiro, ele deve ter algo que possas usar para fazer anotações.Indo até a pequena janela, o padre chama o homem e pede o que necessita.- Não quero que te sintas forçada a cooperar em nada, a tua vida já não tem sido fácil.- Faria isso apenas pelo senhor, padre, sinto que me afeiçoei a si. Talvez veja no senhor a figura do filho que não tive, espero que me entenda e perdoe.Não se chocou, mas surpreendeu-se mais uma vez com a espontaneidade daquela mulher. Com o material necessário nas mãos, perguntou-lhe:- Tens a certeza de que é isso mesmo que queres? Não te perturbará falar?- Não!!! Sinto-me agora muito mais segura para contar a verdadeira história, e não apenas a história que me expôs como uma aberração, não tenho mais nada a esconder, o que resta-me agora é confessar. Dizer quem sou, e por que sou como sou.- Muito bem, estou pronto para quando quiseres começar a falar.- Hum... Deixe-me lembrar onde parei, a minha relação com Lise. Hoje assumo, padre, que não foi um delírio ou uma simples experiência, foi realmente amor e escolha. Após ter-me aberto com o meu marido, parece que ficamos mais íntimas, tudo o que podíamos fazer fazíamos juntas. Muitas vezes, creia o senhor ou não, Francisco estava presente, claro que não falava muito, mas sei que ele simpatizava com ela. Cheguei a pensar, em muitas ocasiões, se não estaria satisfeito em ver o meu amor por Lise. Depois aquilo desaparecia da minha cabeça, preferia não pensar. Muitas noites passei naquela casa, afinal foram dois anos de um amor intenso, apaixonado, embriagante, éramos mais do que amantes, e sabíamos disso. Fomos companheiras, irmãs, amigas, confidentes, havia uma completa união entre nossas almas e corpos. Mas não penses que eu não sentia-me mal, sabia muito bem que era errado. Mas qual erro não compensaria o amor e a alegria que nunca tive na vida? Muita gente estranhava o nosso comportamento, nunca nos tocamos em público, mas agíamos como adolescentes. Eu acho que nunca deve ter passado pela cabeça dos moradores de Salvador que existia o que uma relação como a que vivíamos, tamanho o moralismo que existe contra as mulheres. Bem sabes o senhor que não podemos fazer absolutamente nada, e uma mulher andando com outra não geraria muito falatório.Quatro anos e ainda não a esqueci. Penso nela quase todos os dias da minha vida. Lembro-me muito da minha mãe, que durante anos se amou o capitão à espera da sua volta. Esta esperança já não tenho, sei que nunca mais poderei vê-la. Que o tempo não permitirá. O que me estão a dar de sobra aqui, jamais poderia proporcionar-me um minuto apenas de felicidade ao lado da mulher que amei. Acho que me conformei com essa idéia, quem sabe o mundo de Deus seja diferente e aceite os que amem realmente a ponto de dar a vida por amor.O padre achou melhor se calar e omitir em seus apontamentos o que ela havia dito, senão provavelmente seria queimada na fogueira em poucos dias.- Não seria capaz de dizer-te em pouco tempo tudo o que aquele anjo significou para mim, era um amor tão puro, sei que não pensas assim, nem o mundo, mas era. Nunca houve entre nós nada que não fosse por amor. Lise viajava muito, tinha que tomar conta dos negócios. Eu sentia uma saudade que chegava a doer. Correspondíamo-nos se por acaso ela ficasse muito tempo longe, mas isso aconteceu poucas vezes. Infelizmente, sabia que isto era parte da vida que ela tinha que conduzir.- Nestes dias colocava o meu trabalho em dia, produzia como nunca, o interessante é que a minha costura ficou mais aprimorada, a minha sensibilidade feminina aumentava a cada dia, as minhas clientes até elogiavam o que eu mesma criava. Engraçado, eu sentia-me muito mais mulher, consciente do meu corpo e do corpo das outras mulheres. Parecia que algo novo se tinha acendido para a minha condição de fêmea. Até Francisco me elogiava, nunca entendi aquele homem. Diga-me se era normal? Por favor, não coloque isso aí, tenho medo que possam ir atrás dele. Não quero que o persigam por minha causa, já chega o que eu causei à vida dele.O padre ia anotando tudo, dando as devidas ressalvas que Felipa lhe pedia.Ela pára de falar e pede a Pedro:- Por favor, peço-te que só entregues isto depois de eu terminar de contar tudo o que preciso, será possível?Em resposta o padre pára e pensa: tenho que lhes dizer alguma coisa a eles, pensarei em algo, não posso omitir por completo, mas...- Posso dizer-lhes que está muito debilitada, fala devagar e muito pouco, o que acha?- Esta parte eu não entendo, o melhor é que saia da cabeça de quem saiba como os “abutres” pensam... - e sorriu.Pedro pára, respira fundo, olha diretamente para o rosto de Felipa e despeja de uma vez, sem rodeios:- Preciso dizer-lhe algo – disse em tom tão sério que a mulher se assustou.- Quando começou a contar-me sobre a Elise, não queria acreditar, você há de compreender que cresci num seminário, que qualquer coisa que não consta nas escrituras me é estranho, muitas vezes chocante. No primeiro dia, queria que não estivesse me dizendo a verdade, não podia acreditar que no meio de tanta meiguice... – calou-se pensando na melhor maneira de falar sem a ofender – pudesse ter acontecido realmente o que consta na denúncia. É... sou um homem de pouco conhecimento da vida, mas muito das palavras. Amor para mim sempre foi o que dediquei a Deus, e esse é inigualável, peço que me entendas, orei muito, pedi ao Pai que me fizesse entender, que pudesse ter a capacidade de a não julgar. Entendi minha filha, que o amor de Deus é assim, ama-se o errado, porque o certo, aos seus próprios olhos, não necessita de ser amado. Hoje posso sentar-me aqui e ouvi-la sem que me choque ou que a julgue, pensei muito em Cristo, o quanto perdoou, andou e viveu entre pecadores. Sabes que pecou, disto tenho certeza porque me disse que sabia não ser correto, mas diga-me, quem nunca pecou? Existe um tamanho para o pecado, ou comparação, não é mais pecador aquele que mata sem razão alguma do que aquele que ama, mesmo que fora dos propósitos divinos? Peço-te que me perdoe, se estou aqui hoje consigo é porque amo a si como Cristo amou os homens, sem se importar com os teus erros.Felipa sentiu uma grande ternura e afeição por aquele homem, mesmo sabendo que a visão dele não se parecia com a sua, entendendo o esforço que ele fez para aceitá-la como ela era. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, dessa vez não eram de tristeza, mas de amor, um amor fraternal que jamais havia sentido desde que a sua vida foi exposta ao público.Sem malícia ou pudor abraçou o padre Pedro com todas as suas forças e disse apenas:- Obrigada!Na porta, o barulho dos ferrolhos se fazia ouvir. Eles se separam rapidamente, com a promessa do novo dia.
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