O dia do interrogatório havia chegado. Felipa sentia a tensão de todos os meses se concretizarem em apenas um pequeno espaço temporal.Nada esperava que não fosse relacionado à dor, sabia que teria que falar alguma coisa, mas não sabia exatamente o quê. Não podia negar assumir-se perante os inquisidores, mas nada mais que isso sabia sobre sua acusação.Pensou em outras possibilidades que pudessem justificar ter sua vida exposta que não fosse sua relação com outras mulheres. Sabia que não havia mais nada, pois a única coisa que fizera e da qual Paula poderia acusá-la seria aquilo.Enquanto esperava, pedia forças a Deus para que pudesse suportar com dignidade o que estava por vir.Arriscou até uma oração, mesmo sentindo-se ressentida com a Igreja e seus membros, menos, claro, com padre Pedro, seu amigo e confidente:“Deus, só peço que dê-me forças para que possa agüentar os castigos que me imputarem. Direi que sei por que estou aqui, e realmente sei, mas nada mais eu sei além disso. Sei que, para uma pecadora, estou até tendo muita coragem de chegar diante de Ti e pedir ajuda, mas não consigo considerar-me tão nefasta assim, sei que nada posso fazer agora, mas tenha piedade de mim.”Pedro aguardava impaciente a saída dos inquisidores e outros membros da Igreja que iriam acompanhar o interrogatório. Não tinha conseguido coragem suficiente para se impor como participante, a impaciência do bispo em relação a ele estava evidente e não gostaria de prejudicar ainda mais Felipa.Sabia que as mulheres já não eram bem vistas perante a Santa Inquisição. Lembrava-se da declaração feita por dois inquisidores papais, famosos por ter sido aceita como verdade: “Uma mulher é bonita de se ver, contaminadora ao tacto e mortífera de manter… Um mal necessário, uma tentação natural… Um mal da natureza… Mais frágeis na mente e no corpo e por isso mais afetadas pelos feitiços da bruxaria (do que os homens). Uma mulher é mais carnal do que o homem. Toda a bruxaria advém da luxúria carnal que, na mulher é insaciável.”.Praticamente todas as mulheres acusadas pela Santa Inquisição tiveram um triste fim, e o de Felipa parecia não ser melhor. Dava graças por não ter sido acusada de bruxaria, mas crimes sexuais estavam sendo por demais explorados pela Inquisição. O dela era de extrema gravidade, ele não podia negar que pensava a mesma coisa que os inquisidores com relação ao fato - nem ele, que tinha por ela uma afeição genuína, poderia inocentá-la de sua culpa.Isso era o que mais lhe doía como padre, sabia que, por mais que quisesse, não havia como fugir de fatos. Os fatos estavam ali, ele mais do qualquer outro, sabia disso, ouvira de sua própria boca. Deu graças mais uma vez de não ser um inquisidor, lembrou-se da primeira vez que foi ver Felipa, da vontade que tivera de ser um daqueles que hoje condenava, não por defenderem a Igreja, mas pelos métodos que utilizavam, por terem assumido o papel de Deus na terra, como dissera Felipa um dia.Na prisão, quanto mais os minutos se passavam mais tensa Felipa se sentia. Esperava que a porta se abrisse de uma vez, queria terminar logo com aquela tortura mental. Não suportava mais aquilo.Quase nem ouviu os passos no corredor, tamanha a atenção que prestava nas batidas de seu coração. E assim que escutou se pôs de pé da maneira mais rápida que pôde, ajeitou-se e viu a porta sendo aberta como se levasse horas aquele breve movimento.Esperava uma pequena comitiva, mas apenas um guarda veio buscá-la. Algemou-a e levou-a até a sala em que seria realizada a sessão.Ali estavam dois homens bem trajados, que julgou serem seus inquisidores, além do bispo e de mais outros homens, todos sentados atrás de uma grande mesa. Os dois inquisidores ao centro, o bispo ao lado e os demais espalhados aleatoriamente, era o que lhe parecia.Sua entrada não foi tratada como um fato especial. O guarda que a acompanhava colocou-a diante da mesa, todo seu corpo tremia, mal podia olhar para os homens sem que o pavor lhe assolasse a alma, evitava levantar os olhos.O inquisidor se levanta e passa a declarar aberta a terceira sessão “in specie”.Foi colocado para a acusada a seguinte afirmativa:- Houve contra ti acusações de prática de atos sexuais com pessoas do mesmo sexo, consideras as acusações como verdadeiras, assumes tua culpa?Felipa balança a cabeça afirmativamente.- Não serão consideradas as confirmações que não forem declaradas em alto e bom tom. - disse o homem.- Sim, considero-me culpada.- Estas são as acusações feitas contra ti:“Perante um dos nossos inquisidores, foste acusada pela senhora Paula de Siqueira, 40 anos, cristã velha, que terá mais ou menos dois anos, pouco mais pouco menos, a senhora, moradora nesta cidade, casada com Francisco Pires, padeiro, junto de Nossa Senhora da Ajuda, começou a escrever muitas cartas de amores e requebros, de maneira que ela confessante entendeu que a dita Felipa de Souza tinha alguma ruim intenção... E com estas cartas e semelhantes recados e presentes continuou com ela por espaço de dois anos pouco mais ou menos, dando-lhe alguns abraços e alguns beijos, sem lhe descobrir claramente o seu fim e propósito, até que num dia, domingo ou santo, haverá um ano pouco mais ou menos, estando ela confessante em sua casa nesta cidade, veio a ela a dita Felipa de Souza... Então, ambas tiveram ajuntamento carnal uma com a outra por diante e ajuntando seus vasos naturais um com o outro, tendo deleitação e consumando com efeito o cumprimento natural de ambas as partes como se propriamente foram homem com mulher... Diante da confissão da senhora Paula de Siqueira, uma série de pouco mais pouco menos vinte mulheres a acusaram do mesmo crime, porém com a agravante de que a senhora mediante simulação de doença as chamava em sua casa para que pudesse assediá-las.” Tens algo a acrescentar que seja em teu favor?Felipa estava horrorizada com o que acabara de ouvir, quantas mulheres a acusavam? Quem seriam elas? Atônita, disse:- Confesso que por extrema solidão e sofrimentos pessoais mantive um caso de amor carnal e muita afeição com a senhora Paula Siqueira, mas dos outros casos não posso nada afirmar.Pressionada pelos inquisidores, escuta mais uma vez:- É melhor que confesses a tua culpa, diante da qual possuímos provas concretas e irrefutáveis. Mais uma vez, repetiu:- Confesso que com a senhora Paula de Siqueira mantive um relacionamento, com o seu consentimento, por pouco mais pouco menos de dois anos, as demais acusações nada sei a respeito. Não me nego a assumir a verdade, mas diante de falsas acusações nada posso dizer.E a resposta dada por Felipa foi a mesma durante todo o período do interrogatório.Impacientes com a sua recusa em confessar todos os crimes a ela imputados, continuaram:- Diante da tua recusa em te declarares culpada de todas as acusações que te são atribuídas, nada nos resta a fazer, já que não temos dúvidas de que são verdadeiras, do que te consideramos culpada, e que se cumpra a pena que será aqui estabelecida, por ordem deste tribunal, e honra da Santa Inquisição.E antes que pudesse dizer mais uma palavra, Felipa diz em alto e bom tom:- E as que me acusaram? Elas nada sofrerão? São culpadas e jogaram todas as misérias das suas vidas sobre mim, se me culpam de levá-las a cometerem tais atos, elas fizeram-no tanto quanto eu. Nada fiz sozinha, nada, e em nada forcei ninguém a estar comigo.No meio do seu desabafo, não percebe que o inquisidor dá ordem para que pare de falar, e aceite o fato de que a devassa e culpada pelos pecados contra Deus era ela própria, e como nada a fazia calar-se, ordena que a calem.Felipa sente o peso da mão do guarda na sua face, uma, duas... várias vezes, e para sua própria surpresa cala-se.Sentindo-se nauseada, baixou a cabeça e esperou pela resposta.Deram por encerrado o interrogatório, e foi declarado que na manhã seguinte ela passaria pelo Auto-de-Fé, onde receberia a sua sentença em praça pública.Auto-de-Fé, repetia para si mesma... Sabia o que aquilo significava.
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
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