quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CAPÍTULO IX

A noite ia alta e Felipa não conseguia dormir. Talvez, como ela, muitos estivessem na mesma situação.Não distinguia realidade passada da ilusão, verdade presente do pesadelo. Foi ajeitando-se aos poucos, mudando os membros de lugar, procurando sentar-se e abrir os olhos, mesmo que nada enxergasse devido à falta de lua no céu.Sua alma estava tão escura quanto a noite. Não parava de pensar desconexamente nas pessoas que fizeram parte da sua vida.Não se arrependia de nada que havia vivido, tudo que fez nos anos em que estava livre foi feito de maneira intensa e prazerosa. Tinha sido uma boa filha, sabia disso, amou seus pais e foi amada, viveu cada momento com eles de maneira a ter boas lembranças, sabia que eles não tinham sido felizes, mas isso era entre eles, com ela nunca foi demonstrado ou falado do desamor que sentiam um pelo outro.Percebia que os dois não tinham nada em comum, mas isso não era coisa para uma filha se intrometer.Deu graças por seu pai não estar vivo e por sua mãe estar longe de Salvador. Não queria que sofressem pela peça que sua vida havia lhe pregado.Achava que eles mereciam um pedido de perdão, afinal não tinha sido para isso que a criaram.Ajoelhou-se e começou um solitário diálogo, primeiro com o pai:- Pai perdoa-me por estar cá onde estou, a culpa não é tua, o senhor criou-me direitinho, quem me colocou aqui fui eu mesma, se bem que tive ajuda de fora. Eu sei que as coisas com a minha mãe não eram lá estas coisas, que faltava amor, eu nunca entendi o por quê da sua parte, a minha mãe foi uma das mulheres mais bonitas que eu já vi. E olhe, eu sei dizer se uma mulher é bonita, afinal costurei para tantas que até as conta perdi. Nunca entendi o que aquelas mulheres da rua possuíam que não achavas em minha mãe.Reflexiva, continua a falar:- Quem sabe se hoje sou mais capaz de compreender-te? Acho que o senhor queria mais do que ela podia oferecer-te, acho que posso entender, entendo, foi parecido com o meu casamento, o senhor escolheu-me um bom homem, velho demais para mim, é verdade, porém mais ninguém teria um coração tão bom como o dele.Sorriu de maneira compreensiva.- Eu lembro-me que, quando criança, não havia muito carinho entre nós. Eu sabia, sentia que o senhor amava-me, pela maneira como olhavas para mim, sempre orgulhoso das minhas perguntas, curiosidades, até das traquinices, eu podia ver nos teus olhos que se orgulhava por eu ser tua filha. Talvez não sentisses orgulho hoje, é por isso que cá estou a pedir perdão, o senhor pode-me entender, errou muito na vida perante os olhos de Deus, porque é isso que dizem hoje de tudo o que o senhor fez por aqui. É, acho que poderia compreender-me, afinal o senhor dizia sempre que errar fazia parte da natureza do homem, e eu pergunto-lhe: a mulher também não erra? Será que quando Deus escreveu na Bíblia “homem”, não podia junto ter escrito “mulher”?Dando de ombros, falou:- Não me arrependo do que fiz e de quem eu sou, mas estou a pedir perdão, na minha cabeça, um pai perdoa sempre, mais ainda bem que o senhor não estás aqui para sofrer com nada disto. Deus levou-o antes de passar por este vexame. Eu agradeço também a Ele. Sinto-me perdoada pelo senhor, pai. Fico mais tranqüila com isso. Obrigada pela compreensão. Amo-te, obrigada por me ter amado!Pensou no que iria dizer à mãe, afinal ela ainda estava viva, mas pediria-lhe perdão da mesma forma, talvez mais que ninguém a mãe saberia o porquê de todo o seu sofrimento.Não se ajoelhou, isso era para os mortos, não era o caso agora. Sentou-se no chão como de costume e começou a falar, querendo que a mãe a pudesse ouvir:- Pois, mãe, a senhora hoje é feliz ao lado do homem que amaste durante tanto tempo sem que ninguém viesse a saber. Já que estamos a conversar sem que ninguém esteja com as orelhas em pé, preciso de lhe contar que uma vez, muito antes de vocês irem embora daqui, eu segui-te. Pela primeira vez na vida vi o que era amor, porque olhei nos teus olhos e nunca mais esqueci o que vi. Refletia para todo o lado como um raio de sol, até eu senti como era calma e profunda a forma como olhou para o Capitão. Quero dizer-lhe que apoiei o teu amor, foi naquele mesmo dia que quis sentir-me da mesma maneira. Perdoe-me se invadi a tua vida.Disse isso com os olhos suplicantes.- É por essas e outras coisas que eu precisava de conversar com a senhora. Lembra-te da tua vida com o pai? Eu também sabia que não eram felizes, mesmo que achasse, ou melhor, tivesse a certeza que a mim amavam. Faltava alguma coisa entre vocês, pois é, lembra-te do meu marido? Ele foi sempre bom comigo, acho até que gostou muito de mim, mas 20 anos, mãe, é muita diferença, eu estava com 29 anos e iam-se 13 anos de casada, ele com 59anos. Não que ele não cumprisse com os deveres de marido, mas não era, ou melhor, nunca havia sido o que eu achava que seria, e olhe que às vezes para ele me procurar novamente levava meses, eu sentia falta, mãe, queria sentir-me amada de todas as formas, o meu corpo pedia, nunca disse isto a ele, não podia dizer que queria mais sexo do que ele me podia dar.Ele foi se afastando cada vez mais, porque percebeu que eu sentia muita falta do que me tocassem o corpo, até que não me procurava mais. Como um filho fez-me falta, mãe... Ainda não entendo porque é que Deus amaldiçoou-me desta maneira, hoje eu penso que não era para acontecer, mas como me dói até hoje a falta de um filho, chorei noites e noites, o coitado do Francisco consolou-me tanto!Mais uma vez perdeu-se em lembranças.- Se eu estou aqui, estou porque amei, amei uma única vez, as outras vezes eu sabia que não era amor. Infelizmente sofri, queria poder ter ficado com aquela que amei a vida inteira quando soube o que era esse sentimento, mas a vida faz-nos de bestas, e a gente não entende. O que eu quero que entendas, é que por amor as pessoas cometem loucuras, a tua deu certo, a minha não, mas não me arrependo não, mãe!!! Nunca me arrependi, pelo menos procurei como tu a minha felicidade, e nunca escondi do Francisco não, ele sabia e nunca fez nada, nem me repudiou, só passamos a dormir em quartos separados, afinal, coitado, devia ser duro para ele saber. Senti carinho da parte dele, e muito. Mas não era o tipo de amor que eu queria sentir, eu acho que se sou assim, foi porque Deus fez-me assim, e agora estes urubus querem fazer-me sentir que eu estava errada, e eu não estava, sei que não estava. Amar não é pecado, está até na Bíblia isso, como é? “Ame ao próximo como a ti mesmo”. Que é que eu posso fazer se os meus próximos não eram quem as pessoas queriam que fossem?Como que se desculpando, disse:- Falei demais, mas eu necessitava de dizer o que eu disse, sei que a senhora entende-me, porque amou e aos olhos dos outros também errou. Afinal, como o meu pai sempre dizia, o homem erra, no nosso caso foi a mulher. Mas ainda acho que Deus disse isso tanto para o homem como para a mulher, mas os abutres fedorentos que me jogaram aqui dizem que não, que a mulher é filha do demo. Não!!! Eu acho que lhes faz falta a eles é fornicar uma dessas filhas aí e saber o que podem sentir, e quem sabe Deus até pode fazer com que amem uma delas.Parou e disse para si mesma:- Agora chega, hoje o meu dia não foi fácil, falei com o padre coisas que nem sei se ele estava preparado para ouvir, fiz o que meu coração me mandava, e precisava de pedir perdão à senhora e ao meu pai.Mais uma vez fala com a mãe como se estivesse presente:- Perdoe-me e entenda-me, só peço isso à senhora, porque também enfrentaste o mundo por conta de querer ser feliz, e sei que hoje é. Se servir para alguma coisa perante Deus, rezes para mim, vou precisar de muita oração, já que os que aqui rezam pelos outros amaldiçoam-me. Obrigada, mãe, por me ter feito como eu sou e fui, mais uma vez perdoe se achar que eu errei. Amo a senhora, aprendi muito da vida com a tua vida.Entregue ao cansaço de ter aberto a alma de maneira tão crua para os pais, sentiu que podia descansar.Aquele dia dormiu aliviada, como se tivesse tirado uma das cargas de suas costas, apesar do peso que lhe fizeram sentir.

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